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Contos
18/04/2015 - 13h01
Chacina (*)
Marco Albertim
 

A esplanada da usina amanheceu como todos os dias. A terra seca, cinzenta, nua de seixos, com sulcos largos e vazios, cobriu-se de umidade. Às cinco da manhã, o sol não desponta inteiro. O lusco-fusco adensa-se, emprenha-se do cheiro avinagrado do canavial recém-queimado.

Às vésperas da moagem, o verdor das palhas da cana sumira ou ressecara, nas chamas que antecedem o corte. O cheiro juntou-se ao odor de cinzas do massapê seco, ainda cimentando as raízes de cada touceira. Por último, o bodum do rio com a água gelatinosa da calda da moagem do ano anterior, imiscuiu-se ao conluio dos cheiros diversos. A esplanada dava a impressão de ter sido lavada pela chuva. Mas os homens sabiam que os poros da terra só transpiravam seus miasmas.

Às cinco da manhã, contrariando o costume, a chaminé da usina não soprou o negrume do açúcar cozido. Os homens chegaram aos poucos, vindos de vilas espremidas pelo canavial. Calçavam alpercatas, chinelos de borracha. Homens, mulheres e crianças usando chitas desbotadas, chapéus de palha ou de feltros desfiados. As crianças, descalças, olhos remelados, não se queixavam de fome, mas não se amofinariam caso se deparassem com um prato de ágata entupido de cuscuz.

Eles olhavam para cima, à espreita de uma porção, ainda que fina, de fumaça saindo da chaminé. Mas o canavial fora queimado na véspera, e da largueza do plantio desprendia-se vivo o cheiro da tisna deixada pelo fogo. Aqueles mesmos homens tinham ateado fogo, de um lado e de outro das estradas de massapê entre o canavial. Viram as chamas crescerem, crepitarem com a ajuda dos seixos miúdos na crosta da terra, convertidos em carvão vegetal. As canas, finas, tinham um bagaço grosso subindo à altura do meio do tronco. O bagaço logo transformava-se em cinzas. O vento soprando-as devagar, misturando-as aos poucos insetos, gafanhotos da cor da palha da cana, fugindo do calor intenso. Aqui e ali, uma cascavel escafedia-se; o couro úmido deixando-se curtir na quentura do chão lavrado. Muitas contorciam-se ali mesmo, estorricando-se até se confundir com as raízes queimadas na superfície do chão. Depois da cana cortada, também os restos dos répteis eram enfeixados e jogados na carroceria dos tratores, dos caminhões.

Mas não se ouvia o rugido da esteira conduzindo as canas para as moendas de dentes longos e roliços, tampouco a espremedura chorosa dos troncos.

A multidão inerte, olhando para cima, por fim procurou explicação nas duas entradas sem porta, de acesso ao maquinário da produção. De onde estavam, só se distinguia a escuridão da fuligem espalhada por anos a fio de produção sem manutenção ou limpeza dos paredões laterais.

Ao lado, as salas dos escritórios davam conta de um movimento incomum. Funcionários bem vestidos, usando meias de seda e sapatos de couro, saíam de uma sala para entrar noutra. Não se importavam com a multidão ocupando toda a esplanada. O alambrado em cima dos muros de cimento, separava-os dos cambiteiros de rostos suados.

Por trás da multidão, o barracão da usina mantinha o comércio de costume. De onde estavam, os homens e as mulheres não podiam sentir o cheiro do charque exposto sobre sacos de algodão. Se apurassem os sentidos, no entanto, o azedume do gordo jabá desceria por suas entranhas. Teriam se rendido ao festim da carne distante, não fosse a aparição de um dos funcionários descendo os degraus de salas contíguas; vinha para o portão principal, de saída ou de acesso ao lado interno da esplanada. Debaixo do braço, carregava uma placa de madeira. Sem se atrever a sair, pendurou a placa com a frente para o lado de fora; lia-se: Moagem suspensa. Usina fechada para balanço.

Os poucos cambiteiros que sabiam ler, explicaram para os outros.

– Não é verdade. A usina foi vendida para outro usineiro. E o outro usineiro não vai pagar o nosso salário.

– E agora?

– Vamos entrar no escritório.

– Não precisa ir todo mundo. Basta cinco pessoas.

Cinco camponeses entraram rumo aos escritórios. O vigia se interpôs entre eles, mas nada pôde fazer, apesar de portar na cintura um revólver calibre 38. Foram recebidos pelo dono da usina, um homem de meia idade, baixo e sem chapéu na calvície por toda a cabeça. Não se ouviu a conversa entre os cambiteiros e o usineiro. Ouviram-se cinco estampidos de revólver.

(*) Publicação póstuma


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance. Marco Albertim faleceu em 10 de abril de 2015.

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