O Cais de Santa Rita à noite é tão deserto quanto povoado de calungas. Seus moradores não andam, movem-se como defuntos saídos de cada túmulo, esgueirando-se entre paredes, agachando-se no chão; para não terem a feição alumiada, de modo a tornar visíveis as chagas. O relógio que cada um tem no juízo encolhido, dá conta das vinte horas; é uma hora tocaiada, espreitada em leitos de papelão, de panos ralos e polpudos dos miasmas do chão. Feito um duende de feição indefinida, Renato põe-se ao lado da mulher que tem o dobro de sua idade. Ele tem 21 anos, é magro de pouca altura; o rosto, de tão amarelecido, não reflete nuanças da luz do poste, inda que mova a cabeça miúda para os lados. Quando fala, ouve-se só o ruído fanhoso que se desprende sob o lábio leporino. Ninguém entende, mas todos intuem os intentos de seus grunhidos. A mulher, pressentindo-o, arrisca uma censura, mostra uma regra de seu contrato social. Tem os cabelos amarrados atrás, mas não evita que um tufo insubmisso faça sombra na testa em forma de baú. “Sai com essa cola pra lá...” Não há ranço na voz, só a tenção de absorver a noite com o cheiro próprio do cais. No cais não há o comércio de colas para sapato, menos ainda o queimor ácido da graxa espessa. Renato, ligeiro – a magreza dos braços ajuda –, esconde a garrafa pet na cintura, oculta-a sob a camisa. Convence-se da própria habilidade, grunhe com os braços soltos movendo-se, como a dizer que só tem o corpo meio transparente e a chita desbotada na pele colada aos ossos. A extremidade do cais, toda ela, é ocupada por boxes fechados. O comércio de flores há muito sumira dali. Entre os boxes, feito curvas entre túmulos em desordem, há resíduos de cheiro de margaridas murchas; só os resíduos, as manchas de sujeira no chão de paralelepípedos são como estrume, fedem como o chorume nos charcos. Nos fundos de um dos boxes, Ludmila, o parelho e a irmã – dela – instalaram a própria tenda; não a chamam por este nome, porque quixó, este sim, dá-lhes o feliz sonho de que são os donos do lugar. A irmã de Ludmila está sentada num banco, usa short e não se constrange de ter só o sutiã em torno das mamas tenras. Ninguém a percebe no negrume do labirinto. Ela folga-se modulando a vestimenta na polpa dos peitos. Depois, floca os cabelos lisos com a ponta dos dedos como se estivesse num toucador. Mas tem à frente duas paredes laterais de plásticos emoldurando o quixó, a coberta do mesmo material, nenhuma porta para abrigar o monte de trapos sobre o leito de papelão grosso. O leito é largo e num dos cantos, um bruguelo com menos de um ano aninha-se como um filhote de garça. Os trapos cobrem-lhe a cintura, tem as costas e as pernas nuas. Distingui-lo requer apuro na vista, porquanto, a três metros dali, é apenas uma minúcia no meio dos panos. Ludmila, a mãe, também dera-se conta do indício oracular da hora. Morena, com o corpo tabuado, magra sem ser esquálida, tem no rosto uma beleza fugidia, que não resiste ao tranco de sua rotina. Olha para o filho dormindo, reitera a crença de mãe sem desbastes com o filho; mostra a boca sem os dois incisivos da frente. O boxe fronteiriço tem degraus em forma de arquibancada na frente. Ali, a irmandade malcheirosa senta-se para ruminar sobre como fora o dia. Renato se desprendera da queixa da mulher, sem zumbidos de amofinação. Senta-se, o cuspe desce ralo sob a rachadura do lábio. De seu lado, em pé, Rodrigo tira de sob o casaco preto, feminino, que desce abaixo de seus joelhos magros, a pet com uma risca de cola. A de Renato ainda guarda uma risca – pouco menos da espessura do mindinho de cada um, nos fundos da garrafa –, mas está morta, sem cheiro, porque há quarenta minutos ele a vinha sorvendo. O casaco de Rodrigo é de vison, ganhara-o de uma pequeno-burguesa que se convencera de sua inutilidade nas noites do Recife. – Renato, o que você faz durante o dia? – arrisco. – Eu escancho. À resposta seguiu-se o gesto que expôs a mão direita levantada, com a palma em forma de concha. Ao lado, há o único boxe que tem os fundos com a porta aberta. Dentro, um colchão de casal sem lençol nem cobertas. As paredes da frente, do meio para cima, são vazadas por combogós de cimento. É alugado por 50 reais por mês. A despesa é rateada por dois casais da mesma idade – 19 anos eles, 18 anos elas. – Na hora de transar, um casal tem que sair para o outro ficar à vontade? – Não. Fica todo mundo junto. Vinte horas. Do bagageiro da Hilux, são tirados dois caldeirões de munguzá. Os crentes da Assembleia de Deus, instruem para os cantos e as preces, antes da refeição. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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