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Contos
15/03/2015 - 10h00
Recolhos da memória
Marco Albertim
 

Na última noite de agonia, Alcebíades Lira, tendo ao lado de sua cabeceira a filha mais velha, apontou para a porta do quarto e disse:

– Mamãe e Geraldina estão ali. Vá falar com elas.

A filha, inda que não vendo ninguém, olhou para a porta; olhou para acudir o velho moribundo. Depois, passou a mão nos cabelos lisos, ainda pretos da cor de carvão, que Alcebíades, sem explicação, soubera conservar. Tanto a mãe quanto a irmã do visionário haviam morrido há anos. Depois, não se falou mais no assunto; nem para carpir saudades nem para tornar presentes episódios confinados nos fundos da memória. Há muito a próstata de Alcebíades vinha sendo corroída pelo câncer. Na primeira crise, cuidara-se sem sair de casa, com a ajuda da filha. O diagnóstico, ele o soubera bem antes.

Deu-se no mês passado, o janeiro que o juízo de Alcebíades Lira cultuara como um talismã. Em que pese a exaustão, a memória deu conta de cenários sumidos, de episódios então ruidosos, hoje afundados na cripta dos anos.

Casara-se ainda moço, contra a vontade da mãe. A então namorada, Jurandir Sarinho, namorara com todos os moços de seu quarteirão e dos quarteirões vizinhos. Não fora de outro modo porque, bonita e sem defeito nas pernas, inda que com a intuição bamba, julgara-se com o direito de escolher conforme os traços do rosto, as posses do eleito. Não conseguira eleger nenhum deles, porque as famílias a tinham como incapaz de crescer em algum ofício de pompa remunerada. Conformou-se com Alcebíades Lira, filho de alfaiate, também ele alfaiate, ajudante do pai nas encomendas de ternos e camisas avulsas. A soma de tudo resultou na oposição mal-humorada da mãe. Para agravar, mesmo depois de casado, Alcebíades continuou morando na casa dos pais, dormindo no mesmo quarto de solteiro com outros dois irmãos. Jurandir também não se separara dos pais, das irmãs, na casa ao lado, um beco estreito nos limites das duas. A máquina de costura de Alcebíades, uma Singer movida a pedaladas, mantivera-se num canto da sala de jantar da própria casa. Nunca se queixou; fazia uso do sanitário da família, a venda onde bebia talagadas de pinga, ficava por trás do muro dos fundos, o acesso facilitado pelo portão de madeira, no oitão do quintal; por derradeiro, para emprenhar a mulher, evadia-se da máquina durante o dia, sem fumos de deserção. Logrou emprenhar a mulher por sete vezes.

Primeiro morreu o pai. Depois a mãe se mudou para outra casa, menor, em companhia da filha e do filho mais moços, únicos que não se casaram. Alcebíades juntou as roupas, foi morar com a mulher. Também lá, na casa de Jurandir, duas de suas irmãs haviam morrido, dando vaga para Alcebíades no quarto.

O quarto agora está vazio de barulhos. Há sussurros de lembranças. As paredes escuras socorrem, não dizem nada do presente, porque ali ninguém quer viver o presente. Jurandir tem os cabelos brancos. Não fora de extravagâncias no trato com o organismo. Depois do casamento, o dinheiro minguado do marido não comportou gastos perdulários. Os dois, numa rotina miúda, cinzenta, sem que se dessem conta da variação de cores na vida de outras famílias, conservaram-se. Ele reteve o lume do negror dos cabelos. Ela, a maciez do rosto, com escassos pés de galinha ao lado de cada olho; também reteve os dentes originais. O marido perdera a metade para os cigarros, para as pingas de misturada na barraca de dona Alice.

Ele quer fechar as pálpebras. A filha volta a alisar seus cabelos. Os olhos se reabrem porque são acorridos por ruídos que só seus sentidos resgatam. O cheiro de formol que se desprende do lençol, junta-se ao fel doce que ele sentira quando mastigara uma folha da jurema no quintal. Ali sua mãe, num dos janeiros que ele ainda vive, acendera fileiras de velas brancas em noites escuras ou de luz; balbuciara rezas para evitar que o marido fosse preso, acusado de comunista. O velho dera fim à literatura de matriz bolchevique. Não foi preso. Ainda assim, os trompetes e trombones da banda de música em frente a casa, seguiram para o enterro. Sob o sombreiro verdoso, tocaram a Internacional.

As pálpebras se fecham. A memória segue-lhe o rumo.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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