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Contos
21/02/2015 - 14h01
Dois amigos
Marco Albertim
 

Há amizades que se interpenetram de tal modo que se fundem feito uma liga de metais. Mas mesmo numa liga de aços, as moléculas se atritam. O que dizer de dois amigos que, fundindo os sentimentos num só, absorvem-se nas substâncias e, por isso mesmo, repelem-se de modo surdo? Ivam Marisco e Marconi Martinho conhecem-se há mais de sessenta anos.

Também os pais de cada um foram amigos, inda que tenham se separado em razão de um acidente trágico; ruim para a memória dos filhos, mas carece dizer que a morte prematura do pai de Ivam Marisco interrompeu a fundição da amizade, pôs fim à atração e à repulsa no curso natural da vida de seus pais.

A maior provação Ivam Marisco sentiu-a já adulto, ou na floração da maturidade relativa. Tinha 25 anos, foi preso, submetido a torturas e forçado a dizer onde o amigo se escondera, depois de se ver perseguido pela polícia. Não o disse porque Marconi Martinho, antes de sumir não confessara a ninguém sobre o paradeiro iminente. Não sofreu choques elétricos, Ivam, mas sentaram-no na cadeira do dragão para sentir com os pulsos presos, o queimor de repetidas bordoadas de palmatória na palma das mãos. Com as palmas em brasa, ocorreu-lhe de dizer que o amigo fugira para a Bahia.

Cinco anos depois, Marconi Martinho reencontrou o amigo no modo como gostavam de fruir a amizade: bebendo cerveja num bar na esquina da avenida Guararapes. Ali, nunca tinham esbravejado contra os milicos do golpe, mas tinham viva no juízo a morte de Jonas Albuquerque e Ivan Rocha Aguiar.

Ivam Marisco confessou a Marconi Martinho, posto que não havia como evitar, que para confundir a polícia dissera que o amigo fugira para a Bahia. Os dois se olharam nos olhos. A amizade se fortaleceu conforme convinha ao juízo de cada um. Marconi Martinho sobrevivera para contar como escapara do cerco da polícia. Ivam Marisco, apesar da cadeira do dragão, tinha os membros inteiros e nenhuma marca no corpo.

Num sábado ao fim da manhã, o Recife assemelha-se a uma caneca de chope cheia, e cheira a bolinhos de bacalhau suados de tanto óleo. O bar não é um ponto de comércio, é um abrigo para a quietação de almas peregrinas. Marconi Martinho, por fim, recupera a serenidade de pôr-se à vontade. Ivam Marisco ainda tem sobressaltos para desconfiar de que mesmo na sombra, um torturador o espreita.

O policial de paletó e calça de uma cor só entra no Bar Brahma Chope. Move-se como se estivesse nos corredores que dão acesso ao buque da Secretaria de Segurança Pública. Tem o paletó aberto. Vê-se o cinturão de balas rodeando toda a cintura. Não é um homem bomba, inda que prenhe de intenções fatais. As roupas têm a cor do vinho, iguais aos das garrafas que enfeitam as prateleiras de um lado e de outro do bar. O vinho ou o frescor de sua cor estimula a sede, a gula. Em Ivam Marisco, o efeito foi o de sentir-se expelindo golfadas de sangue; tão real que seu rosto perdeu a coloração própria para dar lugar à palidez lívida do susto.

O policial passou perto dos dois. Sentiu-se o cheiro do perfume borrifando às pressas, junto ao bolor de encardimento no couro do cinturão e do revólver. O vapor do suor, Ivam Marisco sorvera-o nas sessões de tortura. Os dois amigos retomaram a conversa muda, com confissões abundantes de revelações nos olhos aflitos, inquisidores.

Marconi Martinho compungiu-se com o sofrimento do outro. Não pôde evitar a dedução de que, mesmo despistando a polícia inventando um paradeiro qualquer do amigo em fuga, não hesitaria em indicar o endereço real caso soubesse.

Ivam Marisco hoje tem os ombros largos. Dirige um automóvel novo, automático, de sua propriedade. É casado com uma mulher tagarela, mais inteligente que ele. Os anos os deixaram vergados um ao outro; ele, à bisbilhotice gratuita da mulher; também achou conveniente prover-se das especulações nas refeições, na sesta e na cama. Ela, à domesticidade dele, acostumado a deduzir o mundo sem sair dos limites da casa.

Os dois amigos encontram-se todos os anos. Para conversar, Ivam Marisco acode-se no uísque e na literatura de autoajuda. Diz, para se crer fiel às origens da formação do povo, apreciador da cultura afro-brasileira. Aponta as fontes com modos e tom de voz de pesquisador. Não consegue sair do lugar-comum. Marconi Martinho concorda, dando-se conta de sua sujeição à mediocridade disfarçada do amigo.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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