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Contos
14/02/2015 - 10h00
Ao lado da ponte
Marco Albertim
 

Todas as manhãs, somente de um lado da cabeceira da ponte, fazia sombra. Do outro lado, o sol incidindo, o canto permanecera deserto, sequer percebido. O capim ali estorricara, uma chusma escassa de formigas contorcia-se lenta entre os grãos grossos de areia. Inda que fosse o lado do casario com esquina para o rio, ninguém se dispunha a se escorar no anteparo da ponte, para uma prosa miúda.

Já do lado da sombra, olhando para a praça com a meia dúzia de flamboyants floridos, era possível apreciar a longitude sem curvas dos ferros sob o dorso da ponte. Da praça, no extremo oposto, mexia-se em bulício a coreografia cinzenta das putas. As mulheres, indiferentes ao curso morto das águas, talvez por isso mesmo mostrassem no rosto a transição para a esqualidez; as de rosto ainda cheio, semelhavam aos bancos amarelecidos de areia, expostos ao sol, de um lado e de outro do estreito curso d'água.

O lado sombreado da ponte, era apreciado tão somente a partir de uma esquina e outra, onde as mulheres urdiam truques para a faina do comércio rotineiro do sexo. Dificilmente elas iam para lá, porque sabiam que, aproveitando-se da sombra, um monte de moscas varejeiras zumbia junto à parede musgosa da ponte; os fungos as atraiam, os fungos e o balaio de mariscos trazido pela mulher que os vendia. Não se sabia o nome certo de Teresa Miúda, ou somente Miúda. O corpo magro, com o rosto chupado, os dentes retorcidos para dentro da boca, ainda tinha peitos; não se acreditava que dali pudesse minguar algum fio de leite, apesar do filho escanchado num dos lados de sua fina cintura. Miúda, de tão magra, parecia uma vara de bambu, distinguindo-se apenas por sua cor escura, acentuada pelos cabelos da mesma cor, escorridos e nunca penteados. Para espantar as moscas, sacudia a palma da mão que não sustinha o filho; e somente quando o inseto se aproximava de seu rosto ou de algum membro do filho.

Os mariscos, já tratados, eram embalados num saco plástico, com a umidade exposta; sacos transparentes para o deleite do freguês e para o regalo das varejeiras. Miúda não tinha mesmo leite nas mamas sumidas. Por volta de nove, dez horas, o sol já tinindo no calçamento entre a esquina da ponte e o casario em frente à praça, ela atravessava com o filho no mesmo lado da cintura, rumo à padaria. Os sacos de mariscos, inda que sem os cuidados da vendeira, ficavam para trás. Ninguém teria a coragem de subtrair o ganho pequeno de Teresa Miúda. Na padaria, dois pães e cem gramas de uma gordurosa mortadela. O sanduíche ela mesma o preparava de volta ao balaio de mariscos. Podia acomodar a carne no pão, lá mesmo, apoiada no balcão da padaria; mas tinha noção, inda que a encolhesse no juízo curto, das diferenças de suas roupas ao lado das dos outros fregueses. O filho, mastigando a comida com os dentes curtos, deixava escapar da boca restos do pão, da mortadela. Ela, com os dedos, removia a baba da criança com o apontador em concha; no vestido sem cor definida, enxugava a mão.

Às três horas da tarde, com metade dos mariscos já vendida, arriscou-se a ficar até a noite chegar. Às cinco horas, com a luz escassa dos dois postes no casario em frente à praça, o ar encheu-se de penumbra; sem aparência de abandono, posto que aquela hora, as putas tinham trocado a roupa do dia pela indumentária festiva da noite. Teresa Miúda comera um pão inteiro e metade do outro; o filho se conformara com a outra metade. Era um sábado. Tonha Grande, a dona de um dos bordéis, mandou uma das mulheres da casa comprar os restos dos mariscos.

– Miúda – disse a mulher –, dona Tonha quer o que tiver sobrando de marisco. Mas só paga amanhã.

– Pode levar.

No sábado, os cabarés se enchem de homens que não poupam o ganho da semana. Tonha Grande, a gorda proprietária da radiola de fichas mais ruidosa da Barra, também tinha fama de honrar os seus fiados.

Com o balaio vazio, Teresa Miúda pôs-se em marcha de volta para casa. Teria que percorrer, com a familiaridade do costume, toda a margem do rio. A última casa de taipa, vizinha a outra ponte interligando a rodovia, abrigava-a num único quarto; sem cama nem rede, mas um estrado de madeira já encerado depois de tantos anos de uso. O filho dormindo ao lado, numa esteira de chão.

O filho, com a inquietação da fome, meteu uma das mãos no interior do vestido da mãe; conseguiu esticá-la até o bico mirrado do peito materno. A mãe, abrupta, tirou-a de uma só vez.

– Não sabe que não tem!

Na primeira esquina, parou para entrar num boteco também de taipa. Pôs o cotovelo no balcão para apoiar-se. O moleque com os cambitos imóveis, os braços em volta do pescoço da mãe, distraiu-se olhando para o rosto macilento do bodegueiro. Depois olhou, sem pensar em nada, para os olhos vermelhos de Teresa depois de ter entornado meio copo de aguardente.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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