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Contos
04/01/2015 - 08h02
Coito e morte (*)
Marco Albertim
 

Na noite dos Reis, Maria Dulce saiu com a irmã para visitar os presépios. Saiu com a recomendação da mãe, de que trouxesse a descrição precisa de cada lapinha. Na rua do Curtume, um reisado se anunciou ruidoso; era um reisado pobre, e as roupas conferiam pompa aos atores. O rei, com o culote até os joelhos, foi atraído pelo cetim lustroso do vestido da moça recém-chegada. O negro a conhecera no cabaré de Joaquina. Não a chamara para o quarto porque ela estava em companhia de moço endinheirado. Agora, com franjas no culote, blusa comprida de cetim, coroa e cetro, quis homenageá-la. Entregou-lhe o cetro. Puxou-a para o meio. Ela riu, desinteressada, grata. O Mateus fez um volteio entre os dois.

O cetim de Maria Dulce combinou com a função. Juntaram-se na homenagem o mestre, o contramestre, o Mateus e a Catirina. Os meninos, segurando candeias a querosene, fizeram a reverência. O mestre, com um apito, ordenou que seguissem para a visitação aos presépios.

Entraram em casas, recolheram dinheiro. Na última, com Maria Dulce segurando o cetro, deu-se na rua da Baixinha. O mestre apitou. O brilho convidou-os. Na sala, o rei e o cortejo atiraram os lenços nos ombros dos donos. O dinheiro veio dentro.

O amante de Maria Dulce surgiu do corredor. Atrás dele, a esposa, uma velha que já parira muito. Reconheceu Maria Dulce; não estava em sua casa, fora convidada para a cerimônia. Sentiu-se mal. Soprou no ouvido da dona da casa, a inconveniência de acolher gente de conduta sem boa-fé. O mestre, avisado pelo dono da casa, retirou-se com o cortejo.

O rei deu-se conta do desarranjo de Maria Dulce. Ordenou que começassem a dança da Alma, do Diabo e de Miguel. Fez-se a roda. O povo em redor. Maria Dulce foi coberta com um lençol branco, deram-lhe um rosário, instruíram-na a gemer; seria a Alma. O Diabo, de vermelho, com rabo e garras afiadas, persegue-a, puxa-a pelo braço; queria-a refém, levá-la às profundas.

Da janela da casa, a mulher do amante de Maria Dulce assistia, aprovando a escolha da meretriz como alma a pagar uma pena.

São Miguel, com asas brancas e uma espada na mão, interpõe-se. Trava-se a luta entre ele e o Diabo. O Diabo é vencido. Há um estouro de pólvora no meio da rua. O Diabo some de cena. Há alívio entre o povo.

A esposa do amante de Maria Dulce some no corredor da casa.

Maria Dulce devolve a roupa à moça que faria a função, e agradece.

Em casa, contou à mãe sobre o brilho de cada presépio. Fez do auto do reisado um conto de desfeita. A velha conhecera o negro de outras aparições como rei. Elogiou-o. Disse que a ele estava reservada a função de livrar a filha da injúria.

Maria Dulce e a irmã comeram goiabada antes de se deitarem, comeram sem medir os bocados numa das mesas dos fundos da casa.
– E agora, Dulce, o que você vai dizer ao homem? – a irmã, que nunca fora cozida por homens, quis saber.
– Nada. Ele viu tudo.
– Mas você entrou na casa da amiga da mulher dele...
– Entrei como rainha, tinha todo o direito.
– E não foi para o inferno...
– Ninguém pode me mandar para o inferno. Porque todos nós já estamos inferno. Até a velha que queria me ver queimando na rua.

Na hospedaria...

Com o amante na cama, convenceu-o de que tinha a porção divinatória para dar-lhe o viço de macho. Ele sentira fastio, e agora nojo pela mulher que parira seus filhos. Provera Maria Dulce de doces, mas se deixara subjugar pela esposa. Agora tinha a desforra na cama.
– Eu lhe dou todo o doce do mundo – rendeu-se.
– Eu só queria doce quando me fazia mal nos intestinos – confessou ela.
– Vou lhe dar uma fábrica de doces para você não esquecer que foi com uma barra de doce que começou sua vida.
– Não precisa. Uma fábrica de doces não vai adoçar minha vida.

Com trinta e três anos, já tendo comido bacalhau nos dois últimos natais, sentiu-se amputada quando Fabrício, o amante, prostrou-se no chão depois de coitá-la. O homem suara. Não teve tempo de gritar o gozo, caiu fora da cama. Ela chamou-o três vezes, segurou-o no pulso. Tinha o corpo quente, ele, e os olhos revirados.

(*) Do conto, Deus há de prover


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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