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Contos
20/12/2014 - 15h00
Tire a roupa
Marco Albertim
 

A primeira imagem que Adolfo Bonaires reconstituiu no cérebro embaciado, foi a da criança de pernas e braços desnudos, deitada no catre entre dois prisioneiros. Os três, vizinhos e abaixo da fossa sanitária, indiferentes ao fedor; principalmente a menina, cujo rosto e cabelos deixam-se misturar com as fezes. A menina, conforme Tolstói, seguindo a marcha penosa de presos políticos e criminosos comuns na Sibéria Oriental.

Adolfo Bonaires fora preso no Cariri, numa praça do Crato, enquanto sopesava os braços finos de um menino seguro pela mãe. Segurara-o no braço solto, juntando carinho e urdidura, imaginando-o na empunhadura de uma carabina. Por certo não teria forças para puxar o gatilho, mas entregaria a arma ao pai de tronco musculoso, ou à mãe que preferiria a morte a deixar que o filho fosse estropiado sob as patas de um cavalo, como na guerra de Canudos.

Não teve tempo de pôr fim à urdidura porque, jogado de repente, rápido, no piso de uma Veraneio, sentiu o peso de um solado grosso ou vários em seu rosto magro. Estava gripado; a secreção do nariz sumiu na aspereza do couro seco das solas. Não podia gritar por socorro, sequer dizer que se constipara sorvendo o cheiro curtido da cepa com estrias fundas das algarobeiras. Para os esbirros, seria um item a mais no cardápio rotineiro das torturas.

Na narrativa de Tolstói, a menina não tem nome. Adolfo Boiares não sentiu falta da minúcia. O cérebro já se enchera de suposições. Os homens que o prenderam, sobretudo o chefe de estatura baixa, não sabiam rir, só davam conta de que trincar os dentes ou deixar que a bolota dos olhos se deixasse intumescer era mostrar o orgulho do ofício.

Mas a menina, por certo exausta, deixa-se dormir sem queixas do bodum das fezes. A atmosfera do cativeiro é sombria, chumbosa, há o visgo visível da tuberculose. A cela de Alfredo Bonaires é escura. Não há fezes na latrina, inda que as beiras e as paredes internas exibam crostas de fungos, tão pretas quanto o chão terroso do Cariri. Não tem vontade de sentar ali, sequer de urinar; se urinar, não olhará para baixo, evitando que os olhos se promiscuam na dança visível das moléculas apodrecidas.

Ainda está vestido, quer se livrar das roupas porque o calor das paredes sem janela absorve a água que resta de seu corpo magro. Tem na testa o vapor de um pano cobrindo a tampa de uma chaleira com água fervente. Não cede à tentação de se ver livre das fibras do brim que tem no corpo. Se o torturador ordenar que tire as roupas do corpo, não o obedeça, ouvira de um camarada que fora preso. É o prenúncio da desmoralização do preso, a antecâmara da confissão.

Ainda não fora torturado; urdira-se torturado depois que o fizessem sentar na cadeira do dragão. O rosto tinha hematomas, ronchas de socos nas orelhas; os lobos e as hélices ardiam, toda a orelha vermelhava dos tapas. Queria ver-se livre da ardência, tocando-a cauteloso com a ponta dos dedos; mas assim, fazia reavivar o fogo nas laterais do rosto. Pôs cada uma das mãos em concha, para proteger as orelhas. O que sentiu foi a concentração da dor.

Deitou-se no catre. A menina da narrativa de Tolstói, melhor dizendo, seu espectro, soprou em seus ouvidos o bafo doentio e curto dos pulmões ainda não crescidos. A secreção que desce de seu nariz mistura-se sem resistência à água carregada de excrementos, de bacilos sem cores definidas. Adolfo Boiares tem cortes na entrada das narinas. O queimor que vem do fedor da latrina, deixa os cortes mais abertos, em brasa. O sangue do rosto chamusca.

Olhar para cima, como fazia em casa, deitado na rede para entrever os planos de revolução, agora ele faz o mesmo.

Dois homens abrem a porta da cela. A madeira da porta é tão grossa que rosna raivosa quando se deixa abrir. Deixa-se puxar pelos braços, é levado à sala de torturas; tem os olhos quase fechados por causa dos hematomas. Distingue três homens em pé. Têm no centro a cadeira do dragão.

– Tire a roupa! – grita o que parece ser o chefe.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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