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Contos
13/12/2014 - 11h11
A Internacional
Marco Albertim
 

O corredor é estreito. Em um dos lados há três celas vizinhas; também não são grande coisa, em que pese o comprimento; mas a largura é tão pouca que infunde a impressão de que as paredes estão se movendo para se juntarem, não importa quem esteja no meio.

O teto é bolorento, não desmente a suspeita de que absorvera suores diversos; ao invés de sorvê-los e fechar-se sem deixar indícios de contatos, devolve-os em forma de fungos e deixa soltar o bodum de alvenaria velha, coberta de poeira, de furos de estropícios.

Respirar aquele ar causa impacto logo nos primeiros bafejos; em seguida, não se sente a impureza do ar engordado. A transpiração mistura-se às bactérias. A promiscuidade entre a água dos corpos e os microorganismos converte-se em cumplicidade. Resistir é impossível, porque o próprio corpo torna-se agente de doenças. Quem sobreviveu logrou a cura, inda que a doença tenha deixado seus achaques.

Jaciara Bonaires viu-se sozinha na cela. Os esbirros trancaram a porta de madeira; como as paredes e o teto, a madeira se deixara estropiar, sobretudo nos pés da porta, expondo fendas e taliscas soltas. No lado em que a porta se abria, ela encostou seu rosto; deitada no chão, viu o preso deitado no chão do corredor. Os esbirros, depois da sessão de tortura, deixaram-no ali, espremido entre a parede e a porta da cela.

"Eles ainda estão aqui. Botaram um gravador no meu pensamento. Estão lendo o meu pensamento..." De cueca, deu para perceber que tinha os colhões inchados; o corpo, sobretudo o tórax, exibia marcas de socos, de pontapés; o rosto, todo ele com inchações; não via pelos olhos por causa das escoriações, enxergava traços indistintos que cresciam conforme a errância das alucinações. Queria pôr-se deitado de bruços; as dores no tórax não deixavam; acomodou-se num dos lados do corpo, em decúbito lateral.

"Tenha calma. Procure dormir. Você está sozinho no corredor." Jaciara estranhou a sonoridade cadenciada da própria voz. Nos encontros, expondo a orientação do Partido sobre qual tática assumir nos enfrentamentos com o inimigo, fora escorreita, sem lesão na voz. Preocupara-se com duas coisas: expor o pensamento com clareza, combinando a austeridade dos meios de luta com o padrão uniforme da voz. Descobriu-se também portadora de infusões do coração. Fosse cristã, faria uma prece, aconselharia uma reza; mas rezas, pensou, pensou e sentiu-se irredenta por isso, carregam humilhação e talvez o indício da rendição ao inimigo. Viu os dois joelhos do preso chagados, iguais às feridas de sangue do Cristo na cruz. O contralto na voz de Jaciara Bonaires, não soltou-se das cordas da garganta, desentranhou-se das vísceras. Então...

De pé, ó vítimas da fome

De pé, famélicos da terra

Da idéia a chama já consome

A crosta bruta que a soterra

Cortai o mal bem pelo fundo

De pé, de pé,

Na terceira frase, não evitou distinguir nas feridas dos joelhos do preso, a ideia crepitando na chama. Estava de calcinha e sutiã, do jeito que a trouxeram da cadeira do dragão. Queria chorar e chorou porque viu nos beiços pregados do preso, envoltos numa crosta quase bruta, um traço de riso, inda que embotado de tanta dor.

Os esbirros voltaram da sala de reuniões do Doi-Codi; todos de gravata sobre a camisa de manga comprida, branca, arregaçada. Levantaram o preso pelos braços, ouvindo seus gemidos. Irritou-os o esboço de sorriso na boca sinistrada. Trancafiaram-no na cela vizinha. Jaciara Bonaires sentiu falta das chagas do preso.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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