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Contos
29/11/2014 - 13h01
A via-crúcis de Gumercinda
Marco Albertim
 

Descer à rua da Barra evitando a entrada principal, convinha ao decoro até de quem a frequentava sem peias nas pernas. Mesmo à noite, quando uma luz vermelha mantinha-se acesa para luzir de promessas o comércio carnal, evitava-se a largueza da rua pedregosa.

Além dos cascalhos de pedras rangendo sob o solado dos sapatos, a noite, por mais escura que fosse, deixava tinir para cima a sonoridade remelenta de um bolero soletrado na radiola de fichas. As muitas Wurlitzer não rivalizavam, uniam-se num concerto cuja dissonância era como pulos desiguais de brincantes na rua: trôpegos, sinistros e entronizados no ritmo pela orquestra ruidosa. As casas juntas costuravam-se de uma ponta a outra; portas abertas, janelas fechadas, posto que já no primeiro quarto de cada corredor, a folgança do sexo nutria-se da crença de que os achados do gozo não tinham cúmplices a não ser as paredes de tabique de cada quarto.

Cumpre dizer que o gasolineiro Melício não era um frentista comum. No balcão do posto, despachava peças, graxas e óleos para carros; dali, sem esticar as pernas curtas, rodeava a ponta do balcão para empinar o bico da mangueira de gasolina nos tanques dos muitos carros com motoristas acostumados ao bulício ágil de suas pernas.

Melício, por certo, tinha alma, mas nunca a penitenciara na capela do colégio das freiras, do outro lado da praça onde estabelecera seu comércio. Ao contrário da esposa, Gumercinda, contrita nos cultos e na submissão ao marido. Teve dois filhos com ele, e logo viu-se objeto de uma indiferença que cresceu para o enjoo; como nunca reagiu, sofreu a repulsa de Melício. Primeiro Melício passou a subir a escada para as acomodações da moradia, sem fazer o asseio do corpo suado, com manchas de graxa e de óleo. Despia-se tão rápido quanto fora hábil na empunhadura da mangueira. Ela se deixava promiscuir na tisna do cigarro no bigode do marido.

Foi num sábado de aleluia. Melício, convencido de que Gumercinda permanecia tão pura quanto a inércia de seu juízo mole, sem resistência, aboletou-a de seu lado no veículo onde só cabiam os dois. A caminhonete de um assento na carroceria, estacionou em cima da ladeira de acesso largo à rua da Barra. Ele pôs o veículo de frente. A luz branca dos dois faróis alumiou os cascalhos de madeira, de seixos; e chocou-se sem desarrumação com o lusco-fusco rutilante da aba do telhado do bordel de Tonha Grande. Os faróis de Melício abriram caminho para que o lume do comércio incubado de carnes fosse apreciado em seu rubor de sangue. Sabia-se que as mulheres, ali, prostravam-se à palidez do uso ininterrupto de seus corpos. A vermelhidão da luz, no entanto, refulgia uma saúde sumida. Os homens desciam com suas entranhas insanas, certos de que o jorro iminente do sêmen polpudo, devolver-lhes-ia o rubor das faces.

– Não vou descer por aqui. – disse Melício – Vamos pela entrada lateral da rua. Você vai apreciar com seus olhos mortos, como as mulheres daqui têm mais vida do que você.

Gumercinda olhou para baixo da rua. Comparou a rutilância da luz com a do Sagrado Coração no altar-mor da Matriz. Em frente ao altar, esvaziara a alma com a confissão ao padre no confessionário; sem a crueza de sua vida no peito murcho, sentira-se apta para se tornar mártir. A luz do meretrício não se deixava filtrar como a do altar, adensava-se com os pecados em volta cometidos. Gumercinda creu-se pronta para a imolação.

A caminhonete desceu a rua calçada. Não estranhou, ela, que na calçada das primeiras casas, moças de cabaços intactos sequer olhassem para a coreografia buliçosa das putas. As primeiras casas não eram bordéis. No primeiro, o de Joaquina Matias, Melício parou. Não desceram. Meia dúzia de mulheres com pós e cremes nos rostos esticados, miraram-na frias, com fixidez nos olhos. Logo, na porta, surgiu Joaquina Matias. Melício cumprimentou-a com um boa-noite cavo, lascivo, para mostrar-se cúmplice com a mercancia. A caftina não respondeu.

Melício seguiu, parou no terceiro, a casa de Chiquinha Jacaré. A dona não apareceu, mas o marido, com quem dividia o comércio, tinha um cigarro na boca de beiços finos, bigodes tão escuros que acorreram no julgamento frio que fez de Melício. Não esperou o cumprimento, inda que o conhecesse de há muito; sumiu no corredor.

No meio do quarteirão, Melício estacionou sob a luz sanguínea na casa de Tonha Grande. Rodeou o carro por trás. Entre a porta do carona e a do bordel, ordenou Gumercinda a descer. Antes de entrarem, ela fitou a cintilação da luz, cruzou os braços e seguiu o marido corredor adentro. As mulheres que estavam na rua caminharam atrás do casal.

No limiar do corredor, em frente ao dancing, Tonha Grande viu-os sem susto na face quadrada, bexigosa. Ordenou à mulher que estava de seu lado, a desligar a radiola. Depois, mandou que todas se retirassem para a rua e fechassem a porta para ninguém entrar.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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