Ela sentou-se de vermelho no único banco vazio da Praça 13 de Maio. Não fosse uma tarde promissora, com Lula e Dilma Rousseff no Recife, teria chamado a atenção até do camaleão de dois metros de comprimento, que passeia sereno entre as aleias do parque. Ainda assim, não foram poucos os olhos que a mediram dos ombros aos pés. Dos ombros aos pés, vale dizer, porque a vermelhidão de seu vestido era a mesma do batom nos lábios finos, entortando para um lado, no antegozo de um fruto que ainda não se tem nas mãos. Não se pôs em pé, como os moços em volta, mas foi inevitável descer os olhos às suas pernas longas, torneadas, no controle sem botão dos pés cobertos por um par de sapatos pretos, envernizados, de bicos tão finos quanto a ponta de seu nariz. O nariz movendo-se na base, no dorso e na ponta, era tão flexível que seria capaz de se livrar de um inseto incômodo. Não há insetos visíveis nas gramas e arbustos, mas as vagens ressequidas dos sombreiros, deixam cair sementes redondas, finas; caem aos borbotões, deslizando nos cabelos, escorregando para as vias do rosto. Mas... Os moços estão em volta, têm camisas rubras, inda que o rubor do tecido seja sanguíneo, só para dar conta da faina suarenta do operário, ou vertida em sangue conforme os choques com o burguês patrão. O vermelho do vestido, então, punha-se à esquerda dos congêneres. Não se deve poupar-lhe o rosto com o queixo pontudo, descido, sob a boca tão pequena que, aberta, não se alargava para os lados, ondulava-se para cima e para baixo, feito os declives de um ovo. Os olhos miúdos enxergavam tudo, também alargando-se para os lados, espremidos nas pálpebras com cílios grossos, iguais às cerdas da escova de cabelos na bolsa da singular dama. O vento não soprava, inda que o ar não se comprimisse nas sombras. Mas a mulher se livrava das sementes do sombreiro com o uso da escova mostrando as unhas das mãos com o mesmo rubor esquerdérrimo do vestido. Os cabelos, bem que podiam exibir-se com o negrume natural das raízes das gramas, mas ostentavam o negror do rímel usado nas sobrancelhas. Não é necessário acentuar as comissuras dos lábios aderindo à ideologia do vestuário. Assim, nossa dama mostrou-se tão ou mais rutilante que a militância ruidosa da esquerda sem atentar para as tilápias nos tanques. Sim, porque Quitéria de Alma Púrpura, chamemo-la assim para distingui-la do ativismo de Lili Passeata e do rubor contido do laço na cintura de Anita Garibaldi, ela, a dos cílios cegantes, também se mostrava apreciadora da espécime mordiscando vegetais. Às quatro da tarde, a praça encheu-se de gente. Quitéria não pôde mais apreciar os volteios do nado das tilápias. Logo descobriu a compensação nas estampas garibaldinas dos moços; descobriu poucos, porque a maioria viera de subúrbios onde o trato dos bíceps não se dá com o culto ao corpo, ou do agreste ainda esperançoso da reforma agrária. Com o ajuntamento crescente, viu-se na companhia de uma agrestina. Uma mulher gorda vestida de madapolão de cima a baixo; nos peitos largos, o desenho de duas rosas sem brilho sobre a brancura do morim; da cintura para baixo, rosas menores; nos pés, um par de sandálias de couro cujas tiras brancas, expostas ao calor do sol, tinham estrias. O pior de tudo, Quitéria mal conteve a repulsa, as unhas dos pés mostravam curvas grossas nas pontas, estriadas no meio e encravadas nos cantos dos dedos. – Qual é sua graça? – quis saber a recém-chegada. – Não sou daqui – disse Quitéria. – Eu queria tanto ter um vestido igual ao da senhora. – Para quê...!? – Para me parecer com Dilma quando ela aparece na televisão. – Dilma não usa vestido, usa tailleur. – Olhe como a senhora sabe... – Pra votar em Dilma, não precisa saber a roupa que ela veste. – Mas pra melhorar de vida, precisa saber a roupa que veste. Já escuro, no fim da tarde, teve começo a marcha. Lula e Dilma Rousseff, acenando para a multidão, deixaram o Parque 13 de Maio vazio. A agrestina com o morim puído, apressou-se para a rua. Quitéria de Alma Púrpura, só, olhou-se de cima a baixo, certa de que se fosse para a rua, seu vestido seria machucado. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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