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Contos
09/11/2014 - 08h00
Ferramenteiro
Marco Albertim
 

Vivíamos numa sala com pouco mais de vinte metros quadrados. Éramos quatro. Não fosse o torno de três metros de comprimento, a plaina do mesmo tamanho, em cada uma das paredes paralelas; não fosse ainda a bancada de madeira no meio, onde as ferramentas de uso manual se espalhavam, haveria espaço para que nos movêssemos sem contrair os ossos.

O bastante para evitar que, todas as vezes que saíamos para o salão da produção, alongássemos as espáduas e os quadris, como púnhamos óleo nas juntas das máquinas para não emperrarem. Sem falar no birô do encarregado da manutenção, tão pequeno e baixo quanto ele; o encarregado encolhia-se sentado entre o birô e a parede, estudando projetos de ferramentas que tínhamos que executar. Quando não isso, enchia os olhos miúdos folheando revistas de mulheres nuas; um olho em coxas lisas e grossas, outro no cenho pregado de tensão de nossos juízos, com medo de desbastar um milímetro a mais, e assim pondo a perder peças de aço, todas cortadas ou limadas conforme medidas de precisão.

Quando o torno e a plaina funcionavam simultâneos, soltavam um ruído choco. Os dois só tinham utilidade, no corte de aços diversos e ferros ordinários; para isso, outra ferramenta era instalada na caixa de navalha respectiva. O bite, como chamávamos, era amolado no esmeril elétrico. Dava gosto vê-lo com a extremidade afiada, tinha o porte aristocrático de uma arma de uso raro. Fixo na caixa, infligia desbastes simétricos no aço ou no ferro. Para não esquentar muito, pingávamos óleo da almotolia entre o bite e o metal sob seu corte; em seguida, despejávamos água de um caneco de flandres, o mais reles de todos os repositórios da oficina. Uma fumaça espessa subia da cintura para cima. Não fechávamos os olhos, posto que o negror dos óleos há muito encrespara os pelos de nossas pálpebras; acima das membranas, tornaram-se filtros. Os cabelos, sabíamos disso e nos acostumamos, ficavam entranhados da neblina ácida dos lubrificantes.

O mais novo de nós era o ajudante. Submetera-se ao teste de, com o uso de uma lima de dentes finos, desbastar um cilindro de aço cru, até deixá-lo com seis lados, sem perder o contorno de cilindro. Fez o teste fumando, misturando no bico do cigarro, as rebarbas oleosas caídas do aço. Não se importou, posto que seria logo logo um ferramenteiro como todos ali, no uso de macacões tisnados de sujeira, compactos de óleo no couro fino de cada um.

Para ser ferramenteiro, aceitava submisso a imposição de trabalho noturno, mediante a remuneração extra, inda que pequena no contracheque de ajudante. Os mais antigos, ferramenteiros de mãos duras, tratavam-no com o respeito próprio de quem dá as boas-vindas a quem opta com paixão pelo ofício.

Depois de um ano, após refazer a peça sextavada e instalá-la no interior de outra com o mesmo contorno, encheu o peito de orgulho no macacão onde esfregava com estudada indiferença, as mãos gordurosas de suor e óleo. Acoplou uma peça na outra. O encarregado achegou a peça nos seus olhos miúdos. Viu, mirando-a na mesma direção da luz opaca da sala, que de um lado a outro dos seis lados da peça, não havia sinais de luz. O encaixe fora perfeito. O ajudante foi promovido a ferramenteiro.

Nos seis primeiros meses de mudança na carteira de trabalho, continuou sendo o único a ser chamado a cumprir com o horário extra da jornada. Cumpriu-o sem afetação, com a segurança de que nenhuma ferramenta ali, na bancada de madeira estropiada, nas prateleiras e nos armários, era estranha a seus sentidos no domínio da função.

O forno, um armário de aço com duas portas, uma em cima e outra em baixo, ficava do outro lado do salão da produção. Na porta superior, o aço desbastado era posto em brasas para ser temperado; na de baixo, o carvão mineral. Ao lado, no chão, o depósito de madeira onde o carvão era posto. O forno passava uma semana, às vezes duas sem ser usado; tempo correspondente à formatação de cada peça. Para chegar ao local, atravessava-se toda a produção. O passeio distraía, apesar do barulho de prensas, soldas queimando no garfo elétrico, cortes de flandres de ferro e de barras de aço.

O calor em frente ao forno e o isolamento da guarita onde era instalado, tornavam seu uso no pior exercício do aproveitamento do aço. O novo ferramenteiro, esquecido das horas extras, foi atraído para o fogo denso do forno. Até então, usara-o para temperar as peças sem o revenimento. Deixava o aço fremir na luxúria cegante; mas o revenimento, ou seja, requentá-lo sem deixá-lo em brasa, a responsabilidade ficava com o ferramenteiro mais velho. A preocupação era a mesma ou igual à de desbastar o metal na plaina, no torno ou na lima, sem exceder os cortes pré-traçados. Assim ocorrendo, perdia-se o trabalho, o aço ia para o lixo.

O novo ferramenteiro, reparando na peça retangular de aço, feita por ele mesmo no uso da plaina, da lima, deixou-se cegar nos olhos, no gozo do juízo fruindo a vermelhidão do fogo. Com o garfo de cabo comprido, retirou a peça do forno, banhou-a no tonel com água, como de praxe. Levou-a de volta ao forno. Inebriado com o fulgor da quentura, gozou além da conta do que sua lavra seria capaz.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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