O caminhão estacionara ainda escuro. Antes que a manhã despontasse, haveria tempo para descarregar os bichos, levá-los à feira, expô-los em linha reta em todo o quarteirão. Não haveria perigo de perder o lugar, inda que houvesse concorrência para ocupar os espaços vizinhos nas duas esquinas, onde a freguesia entrava curiosa para a escolha de marrãs de quartos cheios ou galinhas de sobrecu pelado. Antônio Prelado informara-se antes da meia-noite, de que os caminhões carregados de bichos, vindos do sertão de Alagoas, estacionariam sob o teto largo e comprido, de zinco, do balcão junto ao posto de gasolina. Dormiu para relaxar o costado e as pernas; de cima a baixo, sentia os membros tensos e o vazio do estômago. Junto do posto, no restaurante, não conseguira desviar os olhos do pernil de porco na estufa do balcão; já cortado, por isto mesmo soltando vapores de gordura, incitando o apetite moderado de comedores eventuais, e o de famintos... Não demorara no exame, virara o rosto para se urdir mordendo, sem cálculo, um naco chorudo dentro de um pão com a crosta alta, soltando assobios entre os seus dentes. Os faróis do primeiro caminhão a estacionar, distinguiram-no deitado junto ao único paredão do galpão, nos fundos. Fizera do tiracolo um travesseiro, levantou-se dobrando o corpo olhando para o paredão e enfiou o lençol no tiracolo. Deixou a bagagem no extremo do paredão, para mostrar que, apesar do espreguiçamento do corpo, restava-lhe força para dar conta da ocupação parida pelo orvalho seco do sertão de Salgueiro. Viu os homens descendo com habilidade própria, dos garajaus de madeira à grade do caminhão, depois para o chão de terra nua, fria àquela hora. Rumou para o mais próximo, ignorando o motorista que descera e encostara-se a uma das colunas altas, de madeira, do balcão. – Posso ajudar? – perguntou com os olhos meio fechados, para esconder a sonolência. – Tá disposto...? – Tô aqui pra trabalhar. – Suba no caminhão. Arreie os garajaus que eu indicar. Antônio Prelado subiu, sentiu que as costas se alongavam, relaxando o seu tronco. Não quis saber ou não se preocupou em distinguir cada um dos bichos dentro dos garajaus; alçou-os com as duas mãos, descendo-os com os braços esticados para baixo, onde os homens os recolhiam. Na noite muda da rodovia fora da cidade, ouviu o guincho das marrãs, o esperneio de cabritos e o choque de galinhas e perus com as asas abertas. Em seguida desceu. Os garajaus foram transportados para veículos menores, caminhonetes; dali, levados para a feira. O feirante que aceitara a mão de obra de Antônio Prelado, advertiu-o: – Ainda vai ficar mais garajau. Conforme o movimento, a gente vem buscar. Pode-se confiar em você para tomar conta...? – Pode. O senhor pode me adiantar um dinheiro? Ainda não comi. Do meio da noite à madrugada, o pernil de porco ocupara-se dos sonhos erradios de Antônio Prelado. Agora, tinha-o refém de seus dentes, convencendo-o de que não se livrara da habilidade de trinchar fatias de marrãs assadas, inda que sem acordos nos tamanhos. Subiu para dormir no estrado livre de garajaus, na carroceria do caminhão. O motorista não fora à feira, jantara no restaurante olhando para a televisão e se recolhera num dos quartos da hospedaria do mesmo estabelecimento. Os feirantes voltaram no fim da tarde. Recolheram no caminhão os garajaus vazios de bichos; toda a bicharada fora vendida na feira de Salgueiro. Antônio Prelado voltou a ajudá-los. Comeu numa mesa à parte, com inveja daqueles homens com pernas e braços desproporcionais às cabeças miúdas, mas corados nas maçãs dos rostos. Subiu com eles para a viagem rumo ao sertão vizinho de Alagoas. Antes que se aboletasse, o motorista pediu sua carteira de identidade para certificar-se de que não transportaria um passageiro com tenções hostis. Em Palmeira dos Índios, fim do percurso. Depois que todos desceram, o motorista inquiriu: – Quem vai pagar a passagem desse moço? Neste caminhão ninguém viaja de graça. Os feirantes se cotizaram e pagaram a passagem de Antônio Prelado. Era madrugada. O caminhão estacionara numa praça meio escura, no centro de Palmeira dos Índios. Cada um seguiu para sua casa. Antônio Prelado caminhou para um posto de gasolina, com estacionamento para caminhões; dali seguiria para Maceió. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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