Em uma cela de uma Delegacia de Polícia. – Ô meu Deus, o que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? – Preso, Márcio? Preso? – É... Preso... Homicídio... Duplo homicídio... – Culpado? Ou podes alegar inocência? Advogado especialista neste assunto tem aos montes por aí. Só arranjar um bom! – Sou culpado, sim! Matei os dois mesmo. Não há como negar... Onde eu estava com a cabeça? – Sei... E tudo por uma vingança? – É... Vingança... Vingança que está me levando ao fim... Acabei como homem! Decretei o meu fim como ser humano! Se é que posso ser considerado um depois de hoje... – O pior é que nem cara de criminoso tem! – Pois é... Não é preciso ter cara de criminoso. Mas o instinto de um... – E agora? – Não sei! Não sei! Só sei que estou causando um sofrimento enorme a mim e a minha família... – Pois é... – E na família dos mortos... – Também! – O que foi que eu fiz, meu Deus? – Arrependido? – Muito! – Agora, não adianta questionar o que fizestes... – É... – Até porque a resposta é simples... – Simples? Como simples? – Sim! Simples... Deixastes o teu passado definir o futuro... – Como assim? – É meu amigo... O passado é um senhor sabido. Ele pode influenciar de duas maneiras em nossa vida... Digo a nossa vida de hoje... O agora... Este instante... – Duas, é? Hum... – É... O hoje nada mais é do que o resultado das nossas escolhas do passado. Isso vale para o bem ou para o mal... – Isso eu sei! E é um tanto quanto óbvia... E a segunda? – Não é tão óbvia assim porque se fosse nós daríamos maior atenção ao presente... – Sei... Sei... É... Está bem... E outra? – A outra é quando vivemos presos em função do passado. Com duas vertentes: a primeira, quando tentamos a todo o custo fazer com que situações que ocorreram dentro de um contexto histórico, social, familiar, festivo e entre outros, voltem a acontecer em um presente totalmente diferente... E insistimos e acreditamos que ressuscitar tais situações “museológicas” é que faz a vida ter sentido... Mesmo que não faça sentido nenhum! Viramos presos de nossas crenças! – Hum... Entendi... E a segunda vertente? – É onde tu te encaixas... Ela tem uma sutil variação da primeira. – Eu? Como? – É quando conduzimos as nossas vidas de forma obcecada por uma ideia ou decisão do passado sem refletir sobre a realidade, seus efeitos e consequências... – E o que eu tenho a ver com isso? – Tudo a ver! Vamos ao fato... Quando a Maria Alice te largou há cinco anos para ficar com o Mauro. O que foi que pensastes? – Pensei... Pensei... Pensei em me vingar! – Então... E não vivestes em função disso nestes últimos cinco anos? Não fizestes disso o combustível e o sentido da tua vida durante todo este tempo? Não pensavas só em vingança, vingança, vingança? – É... Eu... Eu... – Pois é... Consegues ver para onde isso te levou agora? O quão prejudicial foi viver do passado? – É que... – Pense em quantas coisas deixastes de aproveitar por estar com esta ideia fixa na cabeça... Por não se permitir desapegar dessa fixação... Desapegar desse passado... – Mas... – Mas nada! O teu passado acaba de ditar o teu futuro, Márcio! – É... Agora... Agora eu consigo ver tudo isso de forma clara! – Pois é... Só agora... – Deixei de viver o presente para sobreviver do passado. Como eu fui burro, meu Deus! Como eu deixei acontecer isso, hein? – Faltou refletir sobre a própria vida... De usar uma dose extra de razão... De deixar de irrigar diariamente o ódio no coração... – É... Agora eu consigo ver tudo isso... – Pois é... – Infelizmente, não posso voltar atrás e refazer tudo de novo... – Não mesmo! Também não podes reclamar da falta de oportunidades de realizar tais reflexões... – É... É... Por que não pensei nisso antes, meu Deus? – É... São as circunstâncias que provocam as reflexões e trazem a maturidade. – Verdade! É o que realmente me parece agora... – Pois é... – Mas, sei lá! Estranho... Contraditoriamente, mesmo preso, agora, uma parte de mim carrega a sensação de arrependimento e que tenho que pagar pelo que fiz... Sofrimento mesmo... Mas outra parte carrega a sensação de leveza, liberdade e realização! E não é pelo fato de ter me vingado... Acho que é pela compreensão e motivações do crime... Parece que acabo de descobrir uma página nova da minha história de vida. – É... Eu sei, Márcio! – Sabes? – Sim! Eu sei. Eu sou a sua consciência!
Nota do Editor: Rodrigo Ramazzini é cronista.
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