– Camponês não é gente. – Por que você diz isso? – Porque são sujos e falam errado. Poucos dias depois de Sinésio Aroucha destilar sua repulsa aos mais pobres, foi demitido do banco onde trabalhava como auxiliar bancário. Pedira dinheiro emprestado ao chefe do Departamento de Empréstimos; não pedira à instituição, mas ao bolso pessoal do chefe. O chefe esperara três meses para ter o dinheiro de volta. Mesmo com o salário em dia, Aroucha urdia uma desculpa para rogar por novo adiamento. Ao fim do terceiro mês, antes que o chefe lhe fizesse a cobrança com a voz cava e sôfrega, inda que mirando-o com sentença nos olhos, Aroucha adiantou-se: – Seu Neves, não passa do próximo mês. Eu lhe garanto! Um banco vive de garantias. Aroucha nutrira-se da ideologia do crédito cobiçoso, e usou o jargão tão comum a todas as carteiras do banco. Neves Toledo, acostumado a enxergar nos olhos dos clientes, as chances de retorno ou não do dinheiro liberado, certificou-se de que na cintura do subalterno havia o meneio próprio da trapaça. Sem carecer do apoio ou ponderação de outra chefia, julgou Sinésio Aroucha incapaz de personificar o decoro da instituição. Dispensou-o da obrigação de restituir o dinheiro, com o tom seco, nunca mordaz, do bancário de carreira. – Suba ao primeiro andar. Sua indenização já está sendo calculada pela carteira de Pessoal. Aroucha nada disse. Subiu a escada helicoidal, sentou-se à frente do birô da chefia de Pessoal. Tinha os olhos nos cálculos de quanto receberia depois de dois anos de trabalho; mas o juízo, sem dar mostras de ressentimento, ocupou-se do pai, com o mesmo nome seu, e que por isso mesmo, por meio de amizades, conseguira a ocupação para o filho. O pai repreendeu-o; não ao ponto de checá-lo com tisanas morais, realinhando-o para assumir outro trabalho; repreendeu-o porque tinha de repreendê-lo. Semana seguinte, no gozo do desemprego, Aroucha foi ao Savoy, onde repetiu para mim, após ler a página de notícias internacionais do Diário de Pernambuco: – Camponês não é gente. – A propósito de quê, você está dizendo que camponês não é gente? Reabriu o jornal e apontou para a manchete: BOMBARDEIROS AMERICANOS NA OFENSIVA DO MEKONG – Os guerrilheiros do Vietnam são camponeses magros e baixos. Fedem como os do nordeste. Não vão conseguir ganhar a guerra. – Por que tem tanta certeza? – Porque acredito em Kennedy e nos olhos azuis de Marilyn Monroe. Em seguida, sorveu de uma vez toda a cerveja do copo; por certo prelibando-se do cerco vitorioso dos marines nos pés-rapados do Vietnam do Norte. O Savoy, no centro do Recife, era frequentado pela boemia intelectual. Também o PCB, ou uma fração dos mais antigos militantes, ali montara uma célula onde discutia-se tudo, menos a mudança revisionista no programa do partido. A célula do PCB, sentada ao lado, ouvira as imprecações de Sinésio Aroucha. Puseram-se a rir, fazendo pouco das impressões do ex-bancário. Convinha a eles, em que pese a docilidade à pressão revisionista, mostrarem-se confiantes na resistência vietnamita. Mostraram-se mais confiantes com a chegada de outro conviva. O recém-chegado se livrara do paletó, pondo-o sobre o encosto da cadeira, e afrouxara a gravata. Era sexta-feira gorda, mesmo não sendo da semana pré-. Logo deu conta do chope trazido pelo garçom. Sinésio Aroucha percebeu-o, estacou quase perdendo o interesse pela cerveja. Rijo, demorou a tirar os olhos de Neves Toledo com o riso solto na mesa vizinha. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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