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Contos
20/09/2014 - 07h00
O traidor
Marco Albertim
 

Não foi difícil para o professor Edgar Pedro fingir-se de revolucionário. Como militante, assimilara os métodos e cacoetes da esquerda; depois de cooptado pela polícia, reproduziu-os sem macaquear para não chamar a atenção. Convenceu-se de que se tornou um espião perfeito; assim se presumira, tanto que entregou as informações à polícia sem hierarquizá-las conforme o grau de importância de cada uma. Donde se deduz, ora, que não foi espião perfeito; se é que os há.

Edgar Pedro juntou todos num domingo à noite. No pavimento de cima do imóvel conhecido como pavilhão. Uma construção antiga em forma de castelo, nos fundos de outra maior, com um só pavimento e alpendres na frente e num dos lados. Os dois imóveis, construídos pela então próspera fábrica de tecidos de Goiana, estavam desativados. Por ter dado abrigo a uma sorveteria, mesmo com o fim do comércio de gelados, conservou o nome de sorveteria.

Conseguir a chave da porta do pavilhão, o mesmo que, há anos fechado, picara de curiosidades a quem transitasse na calçada ou na rua à margem. No bulício do domingo à noite, quando os dois únicos cinemas da cidade absorviam a população para as duas sessões noturnas. Subindo a escada helicoidal, rumo ao pavimento superior, o grupo, inda que sem ruídos, encheu-se da vaidade própria de quem engatinha nos enredos de uma conspiração. Tudo graças aos contatos de Edgar Pedro, à sua voz nasalada, conforme o rosto moreno com nariz e queixos triangulares, feito um corvo; e à sua estatura baixa em cima do tronco magro. O franzino Edgar Pedro da Silva, ungido a professor no ginásio mais importante de Goiana. Quem poria em dúvida sua pregação solene?

Não havia cadeiras. A roda, formada conforme o ângulo circular das paredes. Por todos os lados, janelas com molduras de madeira, guarnecendo vidros com quadrados de cores diversas, nenhuma transparente. A saleta tão fechada, fez com que se cressem tão ocultos quanto as catacumbas do Convento do Carmo, de onde viera a autorização para a reunião.

Depois de perorar sobre a importância da eleição de frei Tarcísio de Arruda, para a prefeitura de Goiana, Edgar Pedro fez saber o que todos queriam ouvir:

– Aqui é o nosso quartel-general. Quem nos dá a autorização para isso é frei Tarcísio.

A boa-nova, pela untura de louvor enchendo o tórax moço de todos, sem falar no oxigênio do tronco mirrado de Edgar, poderia repercutir, sonora, pela avenida Nunes Machado. Ainda que ninguém dali soubesse que o goianense Nunes Machado morrera aos 49 anos, segurando um rifle, na Batalha da Soledade, defendendo as ideias republicanas.

O primeiro comício se deu sem palanques. Numa curva sem luz, quase ao final da rua Nova, o morador de uma casa de alvenaria cedeu sua calçada e as cadeiras da sala. Meia dúzia de oradores, sentados, esperando a vez de discursar; para fazer o discurso, o orador teria que ficar em pé, de frente para o ajuntamento reunido na rua.

Três oradores prenderam a atenção do povo – o estudante José Veloso de Melo Neto, o alfaiate Osmundson Pereira e Edgar Pedro.

Semana seguinte, os comícios ocorreram em cima de palanques de madeira. Nenhum com a presença de frei Tarcísio de Arruda, que saiu do convento para discursar depois que os mais moços, inquietos, desdobraram-se em caminhadas sem rumo certo. Os discurso eram proferidos em cima de calçadas, de muros, de escadas, de tijolos improvisados. No primeiro discurso, o carmelita citou um episódio da Revolução Francesa.

– Maria Antonieta, sabendo da fome do povo, recomendou que comessem bolacha em vez de pão.

Ninguém entendeu. O popular Parada Doce, de cima do palanque, sem uso do microfone, explicou:

– Se o povo não tem dinheiro para comprar pão, como vai ter para comprar bolacha...!?

Os comícios da direita orientada pelo deputado policial Osvaldo Rabelo, minguavam de público. Resultou que José Veloso, Osmundson Pereira e Edgar Pedro foram levados cada um de sua casa; de madrugada, e surrados no canavial de uma das duas usinas. Ainda assim, os três tiveram que responder a Inquéritos Policiais Militares.

O tenente Câmara, comandante do Tiro de Guerra, dispôs-se a ajudar Edgar Pedro. Os dois se ajudaram. Câmara intercedendo no afrouxamento do IPM contra Edgar; Edgar informando Câmara sobre o perfil de cada um dos militantes. A troca de informações deu-se até depois da campanha, quando frei Tarcísio foi deposto e em seu lugar entrou o interventor Hélio Albuquerque, rodeado de coronéis.

Com livre acesso à estante do Tiro de Guerra, Edgar Pedro tirou da prateleira um livro sobre a revolução em Cuba. Numa das páginas, uma foto com o alfaiate Aderico Alves de Vasconcelos, no meio do povo em armas. Mostrou-o a Aderico, sugerindo que o livro fosse queimado para livrar o alfaiate de um provável processo. Ao que ouviu:

– Não. Eu já sou conhecido mesmo. Se o livro for queimado, aí sim, haverá processo sob acusação de desapropriação e sabotagem.

Como agente provocador, o professor Edgar Pedro da Silva foi um fiasco. Foi preso junto com quatro militantes. Ficou numa cela isolada, distante dos outros; não sofreu os vexames da tortura, foi solto logo.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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