Com a chuva não prevista, a planura do pequeno vale abaixo das duas casas, a de moradia e a de farinha, foi coberta por um lençol d'água cuja força de destruição só não foi sentida, porque não havia plantio. Mas o capim verde, da altura da cintura dos homens abrigados na casa de farinha, ficou apenas com os olhos acima da superfície da água. O riacho sumido, não fosse a mira dos camponeses sobre o tamanho e os recursos da terra, deixou uma lembrança cuja promessa de reaparição renovava-se em medida igual às águas da chuva que o cobrira. Não era um vale fundo, mas o barranco de terra nivelado dando apoio às duas casas, os dois lados de rodovia em volta e uma estrada de piçarra vermelha com acesso principal na rodovia, punham o vale abaixo dos olhos de quem o olhasse. Nas encostas dos lados, com exceção do barranco, uma comprida e rala mata de bambuzal dificultava a visão de quem o enxergasse de cima. Os homens se arrancharam na casa de farinha, meio sonolentos. Na curta madrugada, com os olhos fechados, tiveram tempo de descansar e tiraram proveito para urdir sobre como as braças de terra seriam medidas e distribuídas. Encostaram-se nos lados do forno sem uso; outros, com as roupas meio estropiadas, os fundos sujos da poeira nos assentos, sentaram-se na bandeja do forno. Os mais pobres, alguns com camisa com apenas dois botões para fechar os lados, não tinham chapéu. O resto, inda que com aparência melhor, não tinha posses mas as calças inteiras estavam apenas machucadas, e as camisas tinham botões de cima a baixo; o que mais os distinguia era o chapéu de feltro com a cor esmorecida; nunca o tiravam da cabeça, a não ser para dormir. Com o dia, entre um palpite e outro sobre as chances de se tornarem donos da terra, os que tinham mais prumo nos urdumes removiam o chapéu para um dos lados ou para trás, onde os dedos coçavam com preguiça e distraíam algum traço de desconfiança na fronte de quem ouvia. A mulher que aparecera na porta da casa atraída pela fumaça cheirosa do café no bule de ágata, primeiro enxergara nas brasas dos gravetos entre três seixos no chão, o lume que podia avivar-lhe os olhos rendidos à pasmaceira do brejo deserto. Trouxera um banco de madeira da casa; a madeira do assento há muito perdera a cor, e mantinha-se lisa, encerada pelo uso dos primeiros donos da casa. Sentada, ela ouviu a primeira pergunta e manteve-se indiferente ante a possibilidade de sentir as entranhas da alma expostas. – São filhos da senhora? – Não. Podia se manter reticente ou mesmo não responder, visto que até então se mantivera encoberta, rendida às recusas até mesmo da paróquia de Vitória de Santo Antão, onde, quando as pernas recobravam força, ganhava de um ou de outro uma sobra de comida. Mas os homens haviam consentido que requentasse as entranhas com o café quente. Acrescentou: – São meus netos. A mãe está em Vitória. Só vem aqui quando tem recurso para fazer uma feira e trazer comida para os filhos. – E a casa? De quem é a casa? – Não sei não. Sei que morava uma família aqui com a permissão do dono. Viviam da mandioca que plantavam na beira do riacho. Mas o dono do Engenho Bento Velho proibiu a plantação e fechou a casa de farinha. – O dono do Engenho Bento Velho sabe que a senhora ocupa a casa? – Sabe. Só deixou porque eu disse que não tinha intenção de plantar. De nove horas em diante, as terras do vale absorvedor moveram-se para engolir as águas. Depois do meio-dia, só a margem do riacho se manteve coberta por uma lâmina transparente de água. O viço do vale juntou-se ao cheiro do feijão cozinhado na mesma trempe que fervera o café. Antes do almoço, Joaquim e Tonico, os mais moços, viram a chance de pôr a assinatura na ocupação. – Tonico. – ordenou Joaquim – Está na hora levantar a bandeira. Tonico desceu o barranco com habilidade nas pernas finas. Num outeiro à frente da margem do riacho, enfiou a vara depois de afiar com a faca o gume da base. Em cima, a bandeira vermelha do MST tremelicou feito os galhos do bambuzal no vento. No fim da tarde, o mesmo caminhão que os trouxera da feira de Vitória de Santo Antão, estacionou na margem da rodovia. Lonas de plásticos foram distribuídas para a construção de barracas enquanto o plantio tivesse curso. Na estrada de piçarra, uma mulher descera de um cavalo enquanto o homem que a trouxera permaneceu na sela. Com o chapéu na cabeça, o relho na mão direita e o olhar duro, viu a mulher cruzar o vale rumo à casa de farinha. – É o dono do Engenho Bento Velho – disse a velha. A mulher tirara as sandálias de couro. À medida que se aproximava, distinguiram o batom encarnado nos lábios finos, o ruge no rosto sem covas. Um par de brincos à mostra, com brilho duvidoso. De resto, um perfume tão chinfrim quanto o vestido de algodão impuro. – É a minha filha... – acrescentou a velha. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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