A casa há muito fora desocupada. As paredes da frente, dos lados e dos fundos, nunca tiveram o alisado de mãos nem da colher do pedreiro. Secaram sob o sol, não se desfizeram sob a chuva miúda da Zona da Mata, em Vitória de Santo Antão. Mas os troncos fincados no chão, as varas amarradas de cima a baixo para firmar o massapê ainda mole, expunham aqui e ali os nós feito cicatrizes reabertas. As telhas da lombada mantinham-se inteiras, já as das beiradas, rachadas no meio, não tinham as pontas e os cacos ainda se mostravam no chão seco, em cima do outeiro retangular que servira de arrimo às paredes de pouca altura. Os homens rodearam a casa, conversando baixo, em conluio com o segredo da noite. O tom de cada conversa, no mesmo diapasão do canto dos grilos, do rosnado quase brabo dos sapos, tudo, até o ruído abafado das alpercatas no chão areento, tinha o propósito de acoitar-se no escuro para fazer no anúncio do dia um festim de pouca duração e fundo prazer. Por fim, certos de que a moradia não lhes serviria para o propósito imediato, e ainda de que o arrombamento de uma porta ou de uma janela poderia deslustrar a tenção de desbastar o capim verde mas sem serventia para o gado ausente, sentaram no chão duro da casa de farinha. O lume do candeeiro deu conta do forno desativado da casa de farinha. Não se prestou atenção, mas a bandeja redonda e larga na superfície deixara-se cobrir de uma poeira fina, tão tisnada quanto o barro que se prestara para abrigar o forno. O cheiro da mandioca se rendera ao frescor do rio com touceiras de capim na margem, abaixo, na planura de pouca extensão sem uso nem proveito para pasto. Joaquim, o mais moço, juntou-se a outros três da mesma idade. Acendeu o lume de outro candeeiro, e pôs-se a calcular os próximos passos, assim que o dia desse conta da terra coberta pelo capim espesso, banhada pela mansidão do rio pronto para regar, nas pontas e na raiz, o feijão-fradinho, a arrozeira-d'água. – Quem segura a bandeira? – quis saber Joaquim. – Eu. Escapei de Camarazal debaixo de bala. Se eu levar um tiro amanhã, pelo menos me vingo segurando a bandeira. Tonico tinha a mesma idade de Joaquim, também nos cabelos o bronze queimado do sarará sem dissimulação. – Ninguém vai descer o barranco se agachando. Nós não estamos emboscando a terra. A terra é que ficou descoberta, sem uso. A terra esperou por nós e nós chegamos para tirar dela o que ela está oferecendo. Feijão muito e inhame grosso – explicou Joaquim. Até ali, os homens se mantinham serenos. Enquanto Joaquim e Tonico e mais dois, reunidos de lado, encostados à curva do forno da casa de farinha, enxergavam na empreitada o ganho da precisão de um plano urdido sem uso de lápis ou papel, o resto se entretinha num jogo de baralho de cujos lados pendiam cerdas escuras do suor das mãos. A casa de farinha, carece dizer, fora erguida em frente a casa, a pouco menos de dois metros de sua frente. Talvez por isso, nenhum uso lhe fora destinado. Os dois lumes foram apagados. Os homens deixaram-se engolir sem medo pela escuridão que não lhes espreitava o sono. Só eles, entregues ao remanso da hora, inda que sorvendo o cheiro promissor do chão duro da casa de farinha, suspeitavam de surpresas com desígnios diversos dos seus. Deu-se no escuro mas com um cheiro conhecido pela vegetação que se abre, grunhindo com a vinda do sol. Dois dos homens mais velhos, do carteado com o baralho desbotado, acenderam o fogo com galhos secos, colhidos com os dedos hábeis no tato. O cheiro do café no bule de ágata logo insinuou-se para fora da casa de farinha. O círculo de homens se pôs em pé, outros permaneceram sentados. Ouviu-se um ruído de porta se abrindo. A cerração do dia ainda impreciso, alumiou, saindo da porta da frente da casa, uma mulher com o rosto vincado, indiferente aos cabelos descidos sem a ajuda das mãos. O vestido, impossível distinguir-lhe a cor. Depois, dois meninos, com roupas tão rasgadas quanto as da mãe ou da avó, puseram-se de lado da mulher. Os homens nada disseram, mirando sem espanto a fundura dos olhos da mulher e dos meninos. O café e os pães trazidos pelos homens tiveram mais três convivas. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
|