Por toda a extensão da orla, as escavadeiras deixaram um sulco comprido. À medida que a escavação avançava, sacos de náilon, vazios, se sobrepunham. Em seguida, o tubo alongado de borracha, acoplado à torneira da betoneira na parte de trás do caminhão, despejava a mistura de concreto ainda mole, numa abertura em cada saco, cujo diâmetro coincidia com o do tubo. Cheios, os sacos tornavam-se colchões bojudos de cimento; um em cima do outro, logo se mostravam semelhantes a arquibancadas de estádios. Primeiro a escavadeira abria o caminho, não importando se encontrasse pela frente muros residenciais, bares à beira-mar ou mesmo uma singela peixaria onde a vizinhança de classe média se provia de prateadas carapebas, de róseas ciobas. O negro Zildão há trinta anos estabelecera seu negócio de pescados na beira da praia. Tornou-se conhecido pelo torso largo, o rosto com salientes bochechas de comum acordo com os peitos largos, acolchoados de músculos. Chegara aos sessenta anos e não perdera a robustez, inda que com a gota corroendo-lhe os dois tornozelos, forçando-o a cobrir as feridas chaguentas com rodilhas de algodão sob panos finos. Com a marcha ininterrupta das escavadeiras, Zildão deu conta de abespinhamento no juízo. A gota formigando nos pés, nas pernas, juntou-se ao ruído importuno da betoneira girando. Confessou, então... – Ninguém vai me tirar daqui. Meu pai nunca foi preso. Quando a polícia corria atrás dele, ele se virava num toco de pau. A polícia ficava zonza, sem saber onde ele tinha se metido. A gorda com quem se amigara assentia com o juízo entregue ao negro de quadris ameaçadores, sêmen espesso. – Com quantos anos ele morreu? – quis saber a vizinha, também com negócios de peixes nos fundos da peixaria do negro. – Com oitenta anos. A vizinha, com tumescência na barriga e palidez no rosto, punha-se servil, aduladora, rendida ao tronco lustroso, negro, de Zildão. – Pois você não vai morrer antes dessa idade. É a herança que seu pai deixou. Choveu na mesma noite. O barco de Zildão foi ancorado pouco antes da meia-noite. Mimo, único filho da confiança do negro, e mestre do barco a motor, despejou junto com dois ajudantes, proeiros, a caixa de isopor cheia de carapebas, ciobas, dentões, albacoras e garajubas. Os peixes, depois de pesados, foram depositados nos dois freezers da peixaria. – Pai, na entrada do maceió, a maré já derrubou a barreira de cimento da obra. – Essa obra não tem futuro. Ninguém pode com o mar. Só Deus. – E amanhã? – perguntou súbito o filho. – Amanhã à noite vai ser de maré baixa. Traga o povo para fazer a cerimônia. Na manhã seguinte, os peixes foram vendidos. O frescor do pescado recém-capturado chamara a atenção da vizinhança, já acostumada aos horários de saída e retorno do barco de Zildão. A gorda, no começo da noite, quis soltar rojões na frente do boteco de sua propriedade, junto à peixaria. Os dois dormiam num quarto atrás da parede do boteco; ali coitavam, ali a gorda fazia reparos nas feridas do macho. – Não, agora não. Quando começar a cerimônia. À meia-noite a negrada paramentada de branco deu conta do propósito de homenagens a Iemanjá. O babalorixá, tão bojudo quanto Zildão, agitou na mão direita um sino de ruído agudo. Deu a permissão para que os ajudantes entrassem na água carregando o vaso de barro com oferendas. Mimo, segurando o leme do barco, acolheu-os sem esconder o suor do rosto, a vermelhidão nos olhos depois do sorvo da liamba. Zildão ficou na beira da água. Convencido de que gozava de proteção da iabá, jogou um monte de moedas na água. A tia, irmã do pai do negro, atestou os poderes transformistas da família. – Não se preocupe, meu filho. Com a força de Iemanjá e o sangue de seu pai, ninguém vai lhe tirar daqui. – Tenho fé em Deus, tia. A gorda, ouvindo, ordenou a detonação dos rojões. Choveu toda a madrugada, choveu de a água socar com bordoadas o teto de zinco do negro Zildão. A gorda acoitou-se sem medo nos músculos dos ombros do parelho. O dia mostrou os sulcos abertos pelas escavadeiras cobertos de água, da mesma areia removida para cima e para baixo da beira do mar. A escavadeira, a do pelotão de frente, mirando a peixaria do negro, atolou-se no charco. O coqueiro na frente caíra com a tempestade; o olho com palhas e cachos de cocos, destroçara a cabine do operador da escavadeira. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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