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Contos
26/07/2014 - 10h02
Quarto de pensão
Marco Albertim
 

Um quarto de pensão vazio é tão lúgubre quanto um homem solitário. Suas paredes podem ser borradas ou mesmo chamuscadas de fungos. No homem não há borrifos de mofo na alma, mas a fundura do pensamento oco, quanto mais afunda, mais não acode a apelos de salvação. Com Salvador Peçanha, os borrifos de fungos nas paredes do quarto, serviram para dar conta de que o mesmo poderia ocorrer com seu rosto e seus olhos inertes. Olhou-se no único espelho do quarto, e pouca diferença notou entre a pele riscada de rugas de seu rosto e a superfície crestada de musgos sem vida nas paredes.

Ele descera do trem na estação central. Segurando no ombro a tiracolo com as alças esticadas, mostrou-se viageiro de curtas distâncias, inda que as alpercatas de couro já estivessem com as tiras eriçadas e sem o viço do couro recém-curtido. A calça frouxa, da mesma cor pardacenta das alpercatas, ocultava a real espessura das pernas e das coxas, ajudando na camuflagem dos pés. Não evitou o rangido do couro quando, antes de subir o primeiro degrau para o salão de saída da estação, viu o cartaz com seis rostos e o nome respectivo abaixo de cada foto. No cabeçalho, o westerniano aviso PROCURADOS. Seu rosto não constava, mas o de Marília, com quem se casara por afinidade de ideias e semelhanças de rostos, mirou-o sem susto, por isso mesmo crispando de assombro o juízo de aparência mole de Salvador Peçanha. Demorou um longo minuto para distinguir os outros rostos. Não houve tempo, porque Marília há muito vinha ocupando seu juízo carente da conversa ligeira dela. O pragmatismo da mulher, curtido nos anos de militância clandestina, era uma faca de gume afiado e ponta tão fina quanto invisível. O costume também se estendera ao conluio dos sexos. Inda que o jorro seminal fosse abundante, o ato tinha pouca duração. Sem queixas à performance de cada um, despediam-se satisfeitos, certos de que a dialética dos choques rápidos, logo os reuniria na mesma refrega de cama. Por toda a viagem, Salvador Peçanha pensara em Marília. Encontrou seu retrato no pórtico de saída do corredor de desembarque, e ele, por segurança, queimara o retrato da mulher, um três por quatro miúdo, carregando lembranças, oculto entre outros documentos na carteira de dinheiro.

O quarto da pensão tinha duas camas paralelas. Fora avisado pela proprietária de que a cama vizinha à parede da frente, abaixo de duas janelas da frente da casa, estava ocupada. O ocupante, como ele, também preenchera a ficha de hóspede dizendo-se viajante. A mulher mostrara-se gentil, inquirindo-o sobre o que pretendia no Recife tão ruidoso quanto o pregão de seus camelôs. A pensão, carece dizer, era num beco de casas conjugadas, na Rua Floriano Peixoto. Salvador Peçanha sorveu o cheiro do mangue na margem do Rio Capibaribe, sorveu-o sabendo que os muros da Casa de Detenção também tinham um cheiro próprio, o mesmo instilado dos poros dos presos nas celas.
– Estou procurando trabalho – disse ele sem mirar no rosto moreno da mulher perfumada. Por certo ela nunca se deixara entranhar pelo vapor morrinhento do Capibaribe.
– Tem experiência em quê?
– Fui vendedor. Gosto de lidar com o cliente.
– Não parece. – atalhou ela – Você não está me olhando de frente.
– A senhora não é um cliente meu. Eu que sou o seu hóspede.
– É uma boa resposta mas não diz tudo. Conheço um coronel da Polícia Militar muito conhecido por empresários da Rua da Concórdia. Quer que eu fale com ele para conseguir emprego para você?

Marília se despedira de Salvador Peçanha numa noite de hinos silenciosos e solenes. Não cantaram a Internacional, mas os olhos de cada um, de tão luzentes, chisparam de orgulho, chisparam com a introjeção do rubor sorvido da bandeira vermelha nunca içada, entrevista na curva inferior das costas de Marília.

Na casinha de um quarto apenas, nas margens da linha ferroviária de Bebedouro, em Maceió, decidiram não usar a cama já cúmplice do sexo sem rebu. Foram para o fundo do quintal, abraçaram-se sob a espessa ramagem do sapotizeiro. Deitou-a tendo o cuidado de mantê-la de costas para si. Ela mesma levantou o vestido, desceu a calcinha e logo ouviu o sussurro do parelho:
– Às favas com as convenções da burguesia!

O cheiro de mofo nas paredes da pensão em nada parecia com o estrume perfumoso do quintal. Salvador Peçanha se instalou na cama vizinha ao segundo quarto, separado do seu por uma porta sempre fechada. Quando apagou a luz, sentiu o perfume de sabonete vindo do lado. Olhou pela fina brecha entre um lado e outro da porta, e viu a silhueta nua da proprietária se livrar da toalha com que cobrira o corpo depois do banho.
– Não. Não precisa se preocupar – respondera a ela quanto à proposta de pedido de emprego ao coronel.
– Você parece que não gosta de militares...


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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