O apito vindo da fábrica estourou primeiro nos ouvidos de Mousinho. Convencera-se disso há pouco mais de três meses, quando fora despedido, surpreendido pelo dedo em riste do chefe da manutenção, por ter desbastado um milímetro a mais, no torno, um pino de aço que serviria de ligação entre a base de um estampo e sua navalha, acima, para o corte de chapas de ferro, quadradas, pequenas, com laterais de igual comprimento. Acostumara-se ao estouro do apito enquanto estava empregado, visto que a sonoridade alegre vinda do cimo do bueiro, saudava-o, lembrando a utilidade de sua vida, inda que a rotina dos dias fosse tão cinzenta quanto as paredes de adobe seco da casa onde morava. Agora, sem a agudeza de antes, a sirene estrugiu densa, trazendo o dorso largo abaixo do rosto duro, frio, do chefe da manutenção. Mousinho não se olhou no espelho, não precisava; o couro seco de sua pele morena contraíra, feito uma aderência lenta, sem freios, à mesma cor ressecada das paredes sem reboco, só com a crosta com pontas desiguais, de baixo para cima do teto, junto às telhas expostas. Pensou em tomar um café, pensou com olhos sombrios e selvagens, sorvendo o cheiro quente, fumaçado, vindo dos fundos da casa. Ao lado da cozinha sem móveis, a vizinha já espremera o pano de café, despejara-o no bule de ágata, pusera-o na mesa onde se juntava ao marido de bigode basto, tão escasso de palavras que perdera o jeito de dar bom-dia. E ainda os dois filhos, enteados dele; o mais velho, cobrador de ônibus, tão tagarela, que se referia ao dinheiro passado em suas mãos, como se estivesse amealhando para si próprio. O colóquio, inda que seu salário fosse de curta duração, também bulia de cobiça os olhos da mãe e do padrasto. O filho mais novo, submisso ao silêncio impositivo do padrasto, mastigava mudo o cuscuz quente com a língua já encourada pela comedoria muita, sem a sustância de proteínas. Mousinho teve o cuidado de pentear os cabelos com a escova de cerdas grossas; o penteado para trás serviria de disfarce às maquinações mal contidas na fronte de fauno. Depois, o bom-dia na voz submissa, deixando escapar um indício de urbanidade, ocultaria o rebuliço dos sonhos já esquecidos. Ele passou rumo ao banheiro de uso comum; impossível não se dar conta dos urdumes daquela família, àquela hora também espreitando a marcha sem surpresas do dia mal anunciado; sobretudo os urdumes de Tércia Tiara, a quem cabia receber o dinheiro do aluguel pago por Mousinho. Despedido há três meses, não dera conta do ócio involuntário à proprietária cinquentona, de cabelos lisos, estirados, escondendo a nuca ainda lisa, resistente à tensão de segurar com uma das mãos a alça dos baldes cheios d´água, puxada com a ajuda da bomba manual nos fundos do quintal. Mousinho cobriu-se da água esfriada da manhã sem calor. Quando saiu do banho, aliviou-se vendo a cadeira vazia do velho que nunca respondera a seus cumprimentos; a do velho, a do enteado falastrão e a do caçula com o juízo tolhido pelo medo inconfesso. Só Tercia Tiara, ainda recolhendo pratos, talheres, uns restos do cuscuz, e prestes a fazer uso da bomba na beira do poço, na lavação das louças. Mousinho, com o que recebera da indenização, não deixara de pagar o aluguel. Tércia Tiara, sem contar a pecúnia recebida, recolhia-a ao bolso do vestido, na altura da coxa grossa, do mesmo marrom escuro de seu queixo torneado. O macacão de uso na fábrica, Mousinho pendurara-o depois de lavado, de espremer com sabão grosso as camadas de óleo e graxa no dia a dia gorduroso na oficina de manutenção da metalúrgica. A secagem no varal dos fundos, beneficiava-se do mesmo calor nas calcinhas de largura plena de Tércia Tiara. Ele saiu. O macacão ficou para trás, guardando o viço da limpeza e a impropriedade de não voltar a se engordurar de óleo. Foi para a frente da fábrica, ali mesmo, a dois quilômetros da rua onde morava, no meio da população rala da Vila do Pirambu. Pendurada no gradil de ferro, na entrada da fábrica, viu a placa anunciando vagas, sem precisar o ofício; por certo mais um ferramenteiro, com habilidades no fabrico de peças com medidas de precisão. Um milímetro a mais no desbaste do aço bruto, o anúncio de outra vaga seria posto sem pompa, inda que com o cálculo seguro de quem mira o primeiro desempregado do outro lado da rua. Sentou-se no banco do abrigo da parada de ônibus. Trocou duas palavras com a velha a quem comprara fiado pães, bolachas e doces. A velha cumprimentou-o feliz com os olhinhos miúdos. Ofereceu-lhe café sem nada cobrar, posto que soubera de sua dispensa. Ao meio-dia, a sirene estrugiu o aviso para o almoço. O chefe da manutenção, sem fazer uso do refeitório, cruzou a rua para subir no ônibus, almoçar em casa. - Ainda está desempregado? – quis saber de Mousinho. Viu no desânimo do ex-subordinado, uma presa fácil para entregar à gerência uma captura pouco onerosa à folha de pagamentos. - Tenho uma vaga para você. Para trabalhar como ajudante de ferramenteiro, e não como ferramenteiro... Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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