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Contos
21/06/2014 - 10h03
Um farmacêutico singular
Marco Albertim
 

Os militares não prenderam Aníbal Fregolente logo após o golpe. Inda que sua fama de comunista datasse de quando Prestes fora senador, e toda a cidade chamasse sua farmácia de Moscouzinho, por dois anos ele pacholou pelas ruas de Goiana, sem que se desse conta de que o pequeno comércio de remédios fosse objeto da espreita de alcaguetes.

Com uma perna dura, em consequência de um reumatismo precoce, não conseguia dobrá-la; o modo de caminhar incorporou-se a seu perfil de um jeito que o vulgo não admitia alguém mais com a mesma deficiência. Não usava camisas de manga comprida, porque o uso do linho cobrindo braços e punhos era costume dos senhores de engenho. O linho de Aníbal Fregolente – calça e camisa na cor bege, em combinação com sua pele macilenta – conferia autoridade à pregação que fazia do socialismo. Pregação sonora, inda que com pouco ruído, mas sonora porque cada sílaba de seu vocabulário tinha o eco próprio da voz cava. Quando entrou no Partido Comunista, os camaradas da base à que pertencera deram-lhe boas-vindas, certos de que o poder de persuasão do farmacêutico traria mais gente para o partido. Depois de ouvir as principais obrigações conforme os estatutos, bem como os direitos do militante, fez questão de discursar; não repetiu enunciados de teorias, referiu-se ao socialismo como se o tivesse resgatado de uma página de ficção prenhe de romantismo. O entusiasmo picou-o de tal modo que o fez sentir-se caminhando na antessala do socialismo; assim, inquiriu dos novos camaradas:
– O capitalismo ainda tem cinco anos de vida?
– Isso depende dos operários da fábrica de tecidos, de sua adesão ao programa do partido – respondera Olegário, pescador negro, morando na margem do rio Goiana, com liderança entre todos os barqueiros.
– Eles vêm comprar remédio na minha farmácia, depois que a farmácia da fábrica fechou. Agora compram a mim, e a fábrica me paga.
– Convença-os de que o programa do partido é o mais justo.

Os operários não se consultavam com médico. Aníbal Fregolente, farmacêutico experiente, perorava-lhes sobre a terapia adequada para evitar doenças. Aos que ouviam como a um oráculo, acrescia uma folha ou outra com explicações do partido sobre os benefícios do socialismo. Uma base foi criada com tecelões. O presidente do sindicato, educado no convívio servil com o proprietário, contrariou-se.

A farmácia, dos dois lados do balcão, tinha cadeiras na frente, entre os balcões e as duas portas de acesso. Às cinco horas da tarde, todo o comércio da Rua da Feira minguava. Junto à farmácia, a alfaiataria de Eusébio Rocha fechava às cinco da tarde. Antes de descer a rua, – a Rua da Feira era ladeirada – Eusébio entrava na farmácia para ouvir e discordar das ideias do farmacêutico, na roda de conversa em torno das cadeiras. Evandro Saúna, barbeiro na mesma rua, fora recrutado para o partido pelo farmacêutico. À noite ninguém o procurava para cortar os cabelos; ele aproveitava para ouvir e dar seu palpite sobre o socialismo iminente de Aníbal Fregolente. Se um operário ou outro tinha assento numa das cadeiras, a crença no socialismo, de tão rubra, incendiava os olhos da plêiade de comunistas; para o desgosto do alfaiate, solitário na defesa do capitalismo.
– Minha alfaiataria não será administrada pelos meus ajudantes!
– Sua alfaiataria é tão pequena que não prejudicará a economia socialista – objetava o farmacêutico. – Será mais fácil a minha farmácia fechar, porque o Estado será o maior produtor de remédios para socializar a saúde.
– O que vai fazer você? – insistiu o alfaiate.
– O Estado socialista não vai me deixar na mão...

As conversas na Moscouzinho tornaram-se tão frequentes que, com a luz de cada poste acesa, já noite, as convicções também acendiam. Sem vinho nem qualquer outra bebida, o festim do ideário comunista cria-se inamovível; dir-se-ia o estopim da revolução socialista.

O golpe militar pôs fim às tertúlias. As bases do Partido Comunista, atropeladas pela polícia, desfizeram-se. Olegário recomendara-lhes que não se reunissem, não enquanto o partido não deliberasse sobre como reagir com os militares no poder. Olegário e Evandro Saúna foram presos.
– Eles não acreditam que você seja comunista porque é dono de uma propriedade privada – disse Olegário, já solto, a Aníbal Fregolente.
– E vocês resistiram à tortura? – quis saber o farmacêutico.
– Resistimos.

Dois anos depois, Aníbal Fregolente foi intimado a depor. O chefe de polícia, sem saber o que lhe perguntar, certo de que a faina comunista tivera fim, preveniu-o:
– Defenda-se!
– Ataque...!


Nota do Editor: Marco Albertim jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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