O Largo do Parnamirim é bucólico. Das casas e dos escassos prédios, emana um silêncio que por certo se acumpliciara ao zumbido do delegado de plantão da Ordem Política e Social, de impor o silêncio, de abrir os ouvidos ao que há nele de suspeito. Padre Henrique não se submetera ao silêncio, entrara no número 262 da Rua José de Góis, sem perscrutar a quietude conivente dos oitizeiros de um lado e de outro da rua. Saiu duas horas depois, certo de que sua peroração sobre a liberdade não tinha afinidade com a densidade sombria na copa de cada oitizeiro. O rosto de cada familiar, acostumado ao apoio da caviúna nos cantos da sala, deu conta da serenidade de quem não se inquieta com vultos imprecisos da noite, inda que sôfregos dos balbucios só ouvidos pela inerte caviúna. A caviúna, diga-se, da mesma cor cafuza dos olhos, do rosto imberbe de padre Henrique. Por cinco vezes, padre Henrique se recusou a municiar-se do conchego da família, não aceitando o favor de voltar para casa no automóvel de Salustiano Gomes Lins. “Vai de ônibus para ouvir os sussurros do povo”, disse em seguida o insuspeito médico. Ao derradeiro convite, respondera: “Meus caminhos não são os vossos.” A gravidade da advertência clerical, em nada combinando com a ausência da batina, encobrindo com estranheza o brim encerado da calça cinza, a brancura apurada da camisa de algodão, cujo único enfeite era um simulacro de cruz bordado no bolso à altura do peito. No Abrigo do Parnamirim, a quietação dos oitizeiros, o murmúrio mudo do Rio Capibaribe deram a fortuna a Lavínia Gomes Lins, filha do médico, de ver padre Henrique pela última vez. Afeita ao verdor escuro do Largo, pouco se cuidou da estranheza de vê-lo andando entre dois desconhecidos. O lugar, inda que deserto, há muito se tornara comum aos sentidos da estudante Lavínia. Padre Henrique, nos passos tão seguros quanto a serenidade dos olhos, agora se dirige a uma Rural Willys estacionada junto à calçada. A porta do carro está aberta para o banco de trás. Na frente, na direção, um homem de paletó, cujos cabelos grisalhos não cintilam sob o pardo-escuro da noite. Não diz uma palavra, ele; deixa-se levar pela súbita aparição dos homens, feito um leitor familiar da bíblia, que tem no Cristo a conformação do herói que se imola sabendo que tem o juízo acima da média dos outros homens. Se ouviu algum cumprimento, por certo não moveu o olhar nem de modo oblíquo; posto que, na precocidade dos anos, cedo aprendera a lidar com línguas estrangeiras no convívio com quem lhe ensinara com fôlego nos olhos, sem o ríctus da morte nos cantos da boca, sem negaça nos olhos. O homem da direção, com o paletó ondulado de machucões, ostentando a inquirição ostensiva de outro que, com os mesmos trajes, censurara-o sem dizer uma palavra, por tê-lo visto no cinema assistindo a Um homem, uma mulher. Sem perdão nos olhos e afanoso nos pés, seguira-o por uma semana. Também julga Claude Lélouch, comunista? Não! Não tem arroubo intelectual para julgar a obra do cineasta francês, sequer sabe que ele existe. Mas o homem ao volante da Rural, os cabelos grisalhos, em vez de lhe redimirem os erros, acentuam o desembaraço seco do espectro do CCC. Tem a frieza da autoridade que o Estado lhe confere, sabendo-o um servidor tão real quanto inamovível no ofício. Dirige um carro que é seu também, inda que em nome da Delegacia de Ordem Polícia e Social. É o Estado, assim como Pilatos fora o Estado. - Sim. Os autos levam à conclusão de que os autores da morte do padre Henrique são dois agentes policiais, do chefe de Investigações Criminais, doutor Bartolomeu Gibson, e de seu sobrinho, Jerônimo Gibson, e de jovens pertencentes ao CCC. Isso pode ser explorado no país e no exterior, em desprestígio das autoridades. - Não conclua seu trabalho antes de nossas instruções. Padre Henrique não saberia dos entendimentos entre o promotor José Ivens e Leonardo Greco, consultor jurídico do Ministro Mario Gibson. - Se essa conclusão vier a público, também atingirá Vossa Excelência, da família Gibson. Nem do último parágrafo do relatório do consultor ao ministro. A Rural Willys é estacionada na margem de um matagal da Cidade Universitária. No corpo do padre Henrique não há sinais de que fora arrastado por cordas, inda que uma corda tenha sido encontrada em volta do pescoço e do tronco. Na cabeça há três furos em decorrência de disparos de revólver. O rosto está chagado. Os dentes expostos não expõem dor, só o assombro sereno de quem se crê capaz de ajuizar o crime de outros homens. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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