25/11/2024  03h24
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Contos
01/06/2014 - 09h10
O saque
Marco Albertim
 

Rígido ali, só mesmo o delegado parado à porta de seu gabinete, fitando a imagem do Cristo acima de sua poltrona, enxergando cumplicidade nos olhos de peixe morto de um Cristo que de tão agônico, renunciara a ouvir o murmúrio de crimes no corredor em frente. O Cristo tinha olhos tão somente para a poltrona do delegado, mesmo em sua ausência, o que infundira a convicção de que, estando sua poltrona vazia, a pregação que se desprendia dos olhos mortos, agonizava mais ante os ouvidos moucos das paredes.

Quis sentar-se, mas decidiu ficar ali por mais tempo, para não dar as costas à aura a seu ver vital, que descia dos olhos do Cristo. O Velho Testamento na gaveta à direita de seu birô, com frequência sustinha-o na mão do mesmo lado, sobre pastas de inquéritos ainda em curso. A força da Palavra dando prumo e entrevendo sentenças de punição a ímpios ainda não arrependidos.

Ao fim de cinco minutos, recompôs o paletó cinza, da mesma cor da calça. A reza comum a seus balbucios solitários, subjugou-o na feliz prostração do pensamento sem curvas, cego aos flancos de pecadilhos atraentes. Respirou fundo antes de dar o primeiro passo para a poltrona àquela altura duas vezes fria, porque também se fizera indiferente aos rogos do Cristo acima. Já andando, atinou outra vez para a sua crença pútrida, por isto mesmo cultuada e só abrigada em seu peito de reação morna à rotina desigual dos presos sob sua custódia.

Sentado, mesmo olhando para o corredor de onde viera com passos lentos para fruir-se dos cumprimentos reverentes que ouvira dos agentes na sala, não viu o comissário chegar, pedir licença para falar e dar conta do rebuliço iminente na avenida em frente.
– Como assim? – não se desprendera de seus santos.
– Não podemos fazer nada. São centenas, talvez mais de mil pessoas saindo de becos e descendo as ladeiras da Guabiraba. Vão saquear o comércio.
– E a Polícia Militar, onde está a Polícia Militar!?
– Está em greve, doutor Silvestre. Não tem uma viatura por perto.

Feito duendes saídos de grotões, homens suados, mulheres com varizes à mostra nas pernas e coxas, muitas com o filho entre as curvas da cintura e a intumescência da barriga. Não gritavam, inda que abrindo a boca para ofegar contentes a fraqueza do corpo súbito controlada pelo delírio de ter nas mãos um eletrodoméstico com dobras luzidias. Um grito ou outro se ouvia de moços de bermuda, canelas compridas e cinzentas, nos pés um par de tênis já estropiados, ainda aos sopapos de quem se supunha quites com os costumes da moda. Não tinham trabalho, aqueles moços, nunca lhes deram incumbência com prazo para começo e fim; criam-se, pois, com energia bastante para pôr sob os braços ágeis, celulares e toca-discos, com a desenvoltura suspeitada, só suspeitada, por quem, por isto mesmo, lhes negara ocupação remunerada.

O delegado teve tempo de pôr o revólver no coldre vazio; não abotoou o paletó, mesmo lembrando-se do hábito de sempre fechá-lo antes de entrar na igreja para o culto purgativo. Segurou na bíblia sem tirá-la da gaveta; o fluido adstringente apertou-o de cima a baixo; ao fim, em vez de jungir os membros, distendeu a medula espinhal.

Ordenou que a viatura parasse em frente à loja de eletrodomésticos. Tirou o revólver do coldre, os outros, no banco de trás, imitaram-no. Atirou para cima; o estampido deu lugar ao estrépito, à gritaria. A última prateleira da loja ainda no mesmo lugar, desabou no chão. O gerente, perplexo, olhou para o chão e para o rosto com cismas de salvação do delegado.

O delegado Silvestre ainda viu a última saqueadora saindo da loja, uma mulher com estrias fundas nos cantos dos olhos, da boca e sob o queixo, carregando o estrado de uma cama cujos lados ficaram para trás.

Dia seguinte, uma romaria de saqueadores arrependidos entrou na delegacia com o butim respectivo. Conduzidos por agentes com os revólveres à mostra, ouviram do delegado Silvestre o anúncio de que a pena ser-lhes-ia comutada por outra menor; voltaram para casa nus da pilhagem e do juízo.

A mulher de rosto encarquilhado trouxe o estrado com a ajuda do neto. O delegado perguntou-lhe se sabia rezar.
– Sei sim sinhô. Mas tô com tanta vergonha que no momento num sei começá.

Ele tirou a bíblia da gaveta e, pausado, recomendou:
– Vá para a cela com esta bíblia, sente-se no estrado de cimento. Pode levar o garoto. Quando recuperar a memória da oração, volte aqui e vá para casa.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CONTOS"Índice das publicações sobre "CONTOS"
20/12/2022 - 06h19 Aquelas palavras escritas
20/10/2022 - 06h07 Perfil
30/06/2022 - 06h40 Ai eu choro
13/06/2022 - 06h32 Páginas de ontem
31/05/2022 - 06h38 É o bicho!
24/05/2022 - 06h15 Tocaia
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.