Há cinco anos que Aureliano Santa Clara está aposentado. Não diz a ninguém onde trabalhou, em que ofício amealhou os cobres para comprar os cinco apartamentos que tem alugados. Melhor dizendo, oculta nos aluguéis sua fonte de renda principal. Mora sozinho, e isto o deixa folgado por não ter que dar conta de seu passado a algum familiar com direitos costumeiros; inda que, à revelia do bigode que encobre seu rosto, o que incita a curiosidade dos vizinhos, façam-se comentários diversos sobre a íris de seus olhos que nunca mira o interlocutor de frente. Tem baixa estatura e corpo franzino, penteia os cabelos para trás e deixa-os crescer para não se deixar flagrar, ou mesmo não ter que ouvir referências ao pequeno tamanho de seu corpo. Mora a cem metros do supermercado, e só vai às compras aboletado no Fiat que acomoda bem a escassez de seu tronco, mesmo que seja para comprar apenas meia dúzia de reduzidos brotes. A voz é baritonada, circunstância que o deixa feliz, posto que, com sonoridade severa, defende-se da curiosidade do vulgo. Aureliano Santa Clara não esconde a sonoridade marcial do próprio nome, que também é recurso para não se deixar confundir com o povaréu inculto, sem linhagem. Em 1º de abril último, ele evitou comprar qualquer um dos jornais. Na sala de sua casa, carece dizer, há um cesto de vime com jornais amontoados, com datas ordinárias, sem conexão com episódios inconvenientes de sua vida pregressa. À noite, foi para o bar, dirigindo com morosidade estudada. O motor do carro é tão silencioso que se torna cúmplice do denso mutismo de Aureliano Santa Clara. Foi saudado por Andrada Matoso, funcionário bem-sucedido de multinacional. Matoso não o diz, mas a tagarelice que chama a atenção da comprida calvície na cabeça de couro luzidio, provém do polpudo salário que recebe em troca de pareceres sobre regiões propícias para investimentos da multinacional. Trabalha na própria residência, longe da perscrutação do diretor ou gerente. Salve Aureliano Santa Clara... Que não é personagem de Gabriel Garcia Marques mas poderia ser, caso o colombiano fosse natural dos canaviais da Zona da Mata de Pernambuco. Aureliano Santa Clara acostumara-se à tagarelice de Andrada Matoso, ou melhor, soubera usar sem se deixar surpreender, os inúmeros recursos para não permitir devassa em sua vida pregressa. Matoso gosta de erudição, inda que unindo a menção ao escritor a uma insinuação sobre algum episódio que Santa Clara mantém sob reserva chumbosa. Santa Clara optou por dar conta da vaidade por ostentar um nome de família com linhagem secular. A contrafeição não escapou ao julgamento de Matoso. O silêncio de Aureliano Santa Clara é como a longevidade dos Buendia na obra de Gabriel Garcia Marques; não tem cem anos de solidão, mas a maturidade de um segredo guardado há cinquenta anos. A reação de Santa Clara foi olhar para o verboso amigo, como se estivesse aferindo sua capacidade de prospectar sobre ele. Engoliu a cerveja e não sentiu o prazer costumeiro da erupção de gases. O único recurso de que se serviu, visto que os outros se embotaram, foi acender um cigarro. Também aí a contrafeição não escapou ao juízo inquiridor de Andrada Matoso. A fumaça do cigarro encobriu o rosto de Aureliano Santa Clara, inda que não escondendo as nervuras nos cantos de cada olho, a testa franzida encolhendo os olhos já miúdos. Andrada Matoso, crendo-se alforriado com o gordo salário, creu-se também com afinidades com Aureliano Santa Clara, por também ele meter-se dia e noite numa casa sem parentes; só ele e a ruidosa tagarelice, convencido da cumplicidade das paredes. – Por que você é tão calado, Santa Clara? O que você esconde? Onde foi mesmo que você trabalhou? – Não é da sua conta... Fui servidor público. – Sua resposta atiça mais ainda a nossa curiosidade. Hoje o golpe militar completa cinquenta anos. Isso não lhe diz nada? Aureliano Santa Clara sorveu fundo o cigarro já queimando o filtro embebido de sua baba. A testa premida, agora com suor, mostra a palidez de quem se deixa flagrar na intimidade de seu passado. – O jornal de hoje mostra uma lista de torturadores que obedeciam a ordens do coronel Ibiapina. Matoso pega na cadeira de seu lado e mostra o jornal a Aureliano Santa Clara. Pela primeira vez viu seu nome estampado no jornal. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
|