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Contos
04/05/2014 - 15h00
O coito sem vindita
Marco Albertim
 

Tão logo Cambeba viu o retrato do falecido marido de sua mulher na moldura, correu para o Baldo do Rio. A confusão que criou em suas inseguras conjeturas, deu azo a que se visse rodeado por senhores de engenho de feições cambiantes.

Assim, desceu a rua do Rio certo de que o barão de Bujari fora exumado inteiro de sua tumba no cemitério; com o rebenque de uso costumeiro, a sobrecasaca cinzenta coberta de poeira, e a barba senhorial do visconde de Cairu. Atrás dele, o cortejo obsequioso com o tronco estufado do major Diogo Rabelo; a barriga pomposa, escondida pela camisa de linho, do feitor Pinho Rabelo; bem como dos irmãos Adacildo e Julio. Acompanhado cada um da emplumada esposa, inda que sem o laço saliente abaixo das costas, no algodão verdoso feito uma palha de cana, em cada um dos vestidos.

Antes de dobrar à direita da ponte sobre o rio Goiana, foi cumprimentado pelo velho Cesário que, apesar de não nutrir simpatias pelos oligarcas, vestia–se com calça, paletó e colete, ao modo dos senhores da cana. Cumprimentou–o com o braço canhestro, como para distinguir com precisão quem se ocultava nas barbas brancas e encorpadas do velho Cesário. Cesário riu, mostrando os dentes escuros de nicotina. Cambeba sentou–se no banco da praça em frente ao arremedo de porto. Juntando o tumulto do juízo ao esforço de se crer palpável e sem lesões nos sentidos, espremeu os olhos para trazer de volta os corpos boiando de camponeses mortos no leito do rio, trazidos numa manhã de enchente ainda no começo do agourento mês de abril. Os camponeses, com a perplexidade nos olhos, tinham os rostos e as barrigas empapuçados, as carantonhas ameaçadoras à quentura do sol.

– Ainda perseguido pelos seus fantasmas? – ouviu a voz inquiridora de sua mulher.

Antevendo a reação revolta do marido, ela o espreitara no limiar do corredor da casa. Podia pressenti–la ou mesmo distinguir a robustez de Eulália Rabelo, sobre a cerâmica fria do piso da casa, mas, escoimado pelos espectros familiares às lembranças da matrona, desabara para buscar apoio na inhaca do rio, tão ao agrado das vítimas do senhorio do canavial.

Olhou para trás, não viu o cortejo dos Rabelo com rostos empoeirados, dando conta de uma força superior à compactação das lajes de cada tumba. A voz de Eulália Rabelo dissipara–os com a ajuda do calor cristalino do sol. Espremendo a testa, com as pálpebras quase fechadas dos olhos incréus, o professor Cambeba distinguiu na mulher a iminente descarga de revivescência, com o poder luminoso de sua mente.

– Eu não sou suficiente a você? – quis saber ele, mais para confirmar as suspeitas de necrofilia na mulher, do que para nutrir–se de um sentimento esponsal.

Sem se voltar para o rio, mesmo porque tinha a superfície esponjosa de suas águas e as fissuras das paredes do canal entranhadas no juízo, creu–se pequeno comparando a semelhança do rosto argiloso de Eulália Rabelo com as águas e as margens.

– Não me nutro só com a substância física do meu marido. Creio tanto na força da memória que, com um sopro, sou capaz de jogar para longe a poeira que cobre os anos. A vida, com o que tem de tirar e pôr, não me é cruel.

– De quem você herdou essa faculdade?

– De minha mãe. Ela morreu antes de meu pai e, mesmo assim, não saiu de sua companhia.

– Sua mãe foi enterrada e não resta mais nem o pó de sua lembrança.

– Meu pai costumava dormir mais cedo, só para desfrutar da silhueta viva de sua mulher.

Já em casa, ela parou sob a moldura com o retrato do falecido feitor. Segurou no braço do marido e disse:

– Olhe para ele. Meu marido não tem mais raiva de você.

– Seu marido?

– Sim. Não posso negar.

À noite, já deitados, ela puxou–o pelo braço. Seguiram no corredor. Na noite penumbrosa da sala, distinguiram a silhueta severa do feitor Múcio Rabelo na moldura. O coito não se deu com ríctus de vindita. Eulália Rabelo não soprou para longe a poeira dos anos, sorveu sem pressa a leveza da hora.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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