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Contos
26/04/2014 - 15h01
A gratidão da viúva
Marco Albertim
 

As núpcias do professor Cambeba não tiveram a trilha sonora própria das noites insones de arrulhos e queixumes. Os dois, Cambeba e a viúva do feitor, olharam–se quase perplexos depois de pendurarem as roupas no cabide da parede.

Não apagaram a luz no pequeno abajur lilás, fixo no teto da mesma cor; também as quatro paredes do quarto exibiam o arroxeado lilás, semelhante ao terno de uso costumeiro do feitor. Cambeba e a viúva se atracaram antes de fazerem uso da cama de caviúna, trazida do engenho pelo feitor, depois de abrigar a ancestralidade da família. Atracaram–se para se vingar da tardança do casamento. Desconfiados de que o cansaço poderia frustrar os desígnios da vindita, atiraram–se na cama sem medo de que a caviúna, também a caviúna, soltasse um gemido de vingança.

Toda Goiana dormiu depois de sussurrar o casamento temporão de Arnaldo Cambeba com Eulália Rabelo. Os dois, devorando–se sobre a cambraia do lençol, rugiram protegidos pela alvenaria compacta separando as casas vizinhas, conjugadas. Os sussurros mais próximos dali, na rua do Amparo, juntaram–se ao frenesi ruidoso do casal, dando conta de uma trilha sonora prenhe de promessas e agouros.

Cambeba foi o primeiro a se levantar da cama, ainda zonzo dos espasmos da viúva em seus ouvidos. Não creu–se de todo num lugar seu, ou dado a si pela sorte que há seis anos fora injusta com ele, e agora se mostrava generosa. Olhou para o relógio no pulso; os ponteiros indiferentes apontavam para as cinco horas e quinze minutos, mesmo horário em que, na semana anterior, na estreiteza de sua cama de solteiro, conjeturara sobre a morte prematura do feitor, e seu casamento apressado com a viúva respirando aliviada a alforria enfim obtida.

Assim, Cambeba olhou–se no espelho ao lado da cama e viu o próprio rosto refletido; o bigode ralo, no entanto, deu a impressão de se encrespar ou de ter na ponta de cada fio, um estilete pronto a furar os olhos de quem se pusesse a espreitá–lo. Desviou os olhos do espelho, para não se crer observado como fora no cemitério, pela carantonha espectral do feitor. Eu sou materialista, grunhiu sem supor que a viúva sua mulher, já o espreitava com a mesma desconfiança de que o falecido não se dera por satisfeito por ter lhe concedido o status de viúva, com direito a papel passado pelo cartório.

Outra vez de frente ao espelho, o bigode de Arnaldo Cambeba engrossou, quase escondendo os orifícios das narinas. O espelho mostrou a perplexidade dos olhos; a boca, em vez de mostrar o esgar do espanto, contraiu–se entre um riso mal escapado e a severidade convulsa. Os mesmos traços do feitor Múcio Rabelo, quando confrontado com a pregação de um levante camponês, como único meio para pôr fim ao mando dos senhores de engenho.

– Volte para a cama – a viúva chamou–o.

– Seu marido usava muito este espelho?

– Sempre que ia para o engenho.

– Mas na missa, ele tinha os cabelos com uma ou duas mechas na testa.

– Ele não gostava do padre Hercílio. Dizia que o padre Hercílio tinha parte com subversivos.

– Seu marido era tão fascista que fechava os ouvidos para não ouvir o sermão de padre Hercílio no púlpito. Temia que viesse dali um discurso incendioso.

Eulália Rabelo vivera seis anos sorvendo a respiração azeda, de tabacaria, que o feitor sempre deixava escapar na voz e no sono turbulento. Inda que contrariando seus desígnios de quando fora solteira e, às escondidas dos pais, fomentando em Cambeba as chances de um casamento impossível, deixara–se moldar pelos hábitos de fanfarrice do marido. Não convinha, portanto, esconder dos convivas da casa, a solenidade do casamento com o professor Arnaldo Cambeba.

Assim, convidara para a cerimônia, o juiz Herculano Santoro, tão magro quanto a preguiça de emitir um mandado de soltura, ainda que o preso já tivesse cumprido a pena. O promotor Charles Droit, de rosto incendido feito um alemão nazista. O tenente Câmara, chefe do Tiro de Guerra, zeloso da cartilha do 1º de abril. O delegado de polícia, Mantilha Cedrado, tão calado quanto a solene indiferença aos maus tratos infligidos aos presos da cadeia. E o prefeito Miguel Parelha, mantenedor de mais de uma dezena de mulheres, cujos filhos tinham as despesas pagas pelo pai, inda que não fossem agraciados pelos bens hereditários, porque o velho tinha o cuidado de pôr os imóveis em nome dos netos de seu casamento principal. Convidados e a família, todos com a pompa tão ao gosto do finado Múcio Rabelo.

Arnaldo Cambeba nada dissera, sujeito ao mando e às despesas por conta da herança na conta bancária da viúva.

Os convidados voltaram à convivência na casa onde o feitor se sentara na cabeceira da mesa de refeições.

No Dia de Finados, Cambeba foi ao cemitério ao lado da viúva. Eulália Rabelo, com severidade de matrona, depôs sob a laje do túmulo do finado marido, uma coroa de flores. No meio, uma faixa escrita – A gratidão de Eulália e Cambeba.

O rosto austero do finado tornou–se frequente no espelho do quarto, sempre que Cambeba se espreitava conjeturando sobre o futuro com a viúva do feitor.

Não demorou e ele viu, na parede ao fundo da cabeceira da mesa de refeições, o retrato de Múcio Rabelo na moldura antiga, sem hesitar em mostrar os fios do bigode.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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