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Contos
20/04/2014 - 17h06
A justiça do professor Cambeba
Marco Albertim
 

Há um débil limite entre o imaginário e o palpável, em quem opta pelo materialismo, durante um bom tempo antes que a nova escolha não se assenta em conjeturas científicas. O imaginário, inda que carregue o risco de retrocesso a crenças difusas, é tentador porque induz à prostração do raciocínio.

A crença na convulsão permanente da matéria requer tempo, tempo e observação. O professor Adauto Cambeba, há algum tempo dera as costas às homilias do padre Hercílio, mesmo mantendo uma polêmica amistosa entre o viço de seu credo ainda vaidoso, e a metafísica do religioso. A recusa, no entanto, ao reconhecimento do regime militar como legítimo, juntava–os como a irmãos.

– Aos militares, a cremação dos infernos!

– Vai com Deus – respondera padre Hercílio da última vez em que se atiçaram.

Dali a uma semana, meio que ungido pelo bom agouro do padre, Adauto Cambeba juntou–se a meia dúzia de amigos, pondo–se a conversar na praça deserta àquela altura da noite, ou começo da madrugada. Convém precisar que a praça alongava–se em forma de triângulo, espremida por casarões de um lado e de outro, habitados aqui e ali por oligarcas de engenhos de açúcar. O grupo acomodara–se em dois bancos, um de frente para o outro, sem recosto para as costas. Na extremidade aguda do triângulo.

Certo de que padre Hercílio daria razão a sua prédica, o professor não subiu no banco a modo de um meetingueiro republicano, mas levantou–se, ficou em pé na alameda de terra crua da praça.

– Os militares serão julgados por seus crimes. E o mel que escorre da cana–de–açúcar de Goiana, não será mais tingido pelo sangue dos trabalhadores...

No quarteirão da rua do Amparo, um único feitor de engenho deixou–se acordar pelo zumbido das predições de ameaça do professor Adauto Cambeba. Múcio Rabelo ergueu–se da cama de caviúna, cuja entalhadura barroca afiançava o legado colonial de que se beneficiara. A esposa, tão madura quanto ele e, ainda com relevos sem indícios de perda do frescor, seguiu no sono sem pecados das sinhazinhas atentas às homilias de padre Hercílio.

Múcio Rabelo reconhecera o diapasão anasalado do odiado professor Cambeba. Telefonou para a Cadeia Pública, queixando–se de agitação imprópria no nicho secular da Praça da Bandeira; telefonou, atendeu–o o sargento plantonista, àquela altura também agastado por ter sido interrompido em seu sono de soldado no justo descanso.

A viatura policial, uma pickup, estacionou ao lado da praça. O feitor se pusera na janela de casa, com os cotovelos debruçados, mostrando as listras do pijama azul e branco.

– É aquele de focinho mole. Esse mesmo, o Cambeba – gritou ele para o professor.

Adauto Cambeba foi posto na carroceria coberta da pickup, junto a dois policiais fardados com a mesma cor do veículo. Aos outros, ouvintes atentos do professor, o sargento ordenou–lhes a dispersão.

O professor Adauto Cambeba foi solto na tarde do dia seguinte, a rogo do padre Hercílio. Uma semana depois, o feitor Múcio Rabelo morreu na cama de caviúna, apoplético, contrariado com as ameaças em surdina de Cambeba. Padre Hercílio rezou a missa de sétimo dia, a contragosto do professor. Cambeba jurou, e disse aos amigos que o viram ser empurrado para a pickup, pichar em tinta preta na lápide do feitor – Aqui jaz um fascista.

Cambeba seguiu pela rua das Quintas sem que ninguém o enxergasse na madrugada fumaçada de agosto. Abriu um dos lados do portão do cemitério; o ferro, ainda que velho, não rangeu. Fora ao enterro do desafeto, espreitara com pesar o choro da viúva, noutros tempos sua namorada. O vento soprou frio entre as palmeiras e acácias, nas alamedas salpicadas de pedrinhas. É atrás da capela – pensou. A lua quis se insinuar, só espalhou um arremedo de claridade, tão bacento que se confundiu com o rosto terroso de Cambeba. Súbito, o vento soltou um assovio grosso entre as acácias cujos galhos se chocando, arranham–se. Cambeba voltou–se, mesmo depois de distinguir na lápide do feitor, espectros de outros feitores, já comidos pelos vermes. Múcio Rabelo ainda tem carne nos ossos – ajuizou. A acusação na lápide, não será tão tardia. A luz da lua, insistindo contra a bruma fumacenta, deixou entrever o que mais zumbia nos ouvidos de Cambeba, o sussurro ruidoso dos galhos das acácias, os mais grossos. Ele olhou na mesma direção da suposta conversa. Não viu ninguém. Mas entre o ir e vir da luz indecisa da lua, pensou distinguir um rosto com um bigode peludo nas cascas dos galhos das acácias. Quanto mais a luz incidia nos troncos, mais desprendia–se um som difuso, inda que audível, de uma voz suplicando para a lápide não ser conspurcada – Nãaao. Não pode ser, eu sou um materialista – rematou Cambeba. Tirou do bolso de trás da calça o spray de tinta. Em vez da sentença na lápide, jorrou a tinta entre um tronco e outro da acácia, onde supunha ter visto o rosto indeciso do feitor.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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