No rosto de Branca, as estrias ainda davam conta da beleza nutrida sem a ajuda de pós; a limpidez do rosto se fora, e as estrias, sem apuro nos olhos de quem a observasse, ficavam imperceptíveis. Distinguidas, era impossível não conceber o quanto prazeroso fora aquele rosto na juventude, e logo uma saudade sem dor imiscuía–se no juízo de quem a olhasse, mesmo sem tê–la conhecido nos anos da mocidade. O choro cobriu–lhe o rosto com o mesmo impacto de uma cena de teatro grego. Não estava acostumada a chorar, Branca, por isso pôs as mãos sob os olhos; as lágrimas, teimosas, encorparam–se. Ela esticou os dedos para cobrir os olhos. À frente, o mar recuara com o influxo da maré. As embarcações de madeira expunham os cascos com musgo e ostras incrustados. O vento, recolhido, cedera o espaço até para choros infantis. O que se ouviu foi o choro convulso de Branca. A areia branca, coberta de sargaços ressequidos, aqui e ali se deixava ver sem os fios das algas. Escondida, mantinha um diálogo denso com a mocidade fanada de Branca. Godinho, de propósito sentara–se de costas para a praia; para manter–se indiferente ao que os dois, juntos, urdiram ser o nicho adequado às infusões dos sentimentos; para manter–se mais que atento, dócil às imprecações convulsivas de Branca. Na véspera, ela voltara para casa depois que ouvira do síndico do prédio, ser imprescindível sua assinatura na ata da reunião do condomínio, antes que o cartório de notas fechasse. No almoço, num restaurante da praia, Godinho não soubera esconder a contrariedade de, horas antes de se recolher com a mulher no quarto escolhido para os festejos do sexo, ver Branca voltar no carro em companhia do motorista; os dois, em animada e concorrida conversa. Branca, com a voz tão inquieta quanto a agilidade de suas pernas, apontara para o motorista as acomodações da casa. Godinho acomodara sua bagagem na prateleira de cimento na parede do quarto; elementar, pensou ele, mas se recusou a tomar parte na incursão frívola de Branca, dando conta das utilidades de cada dependência da casa na frente do mar. Na vinda, duas horas de viagem, Branca, sem indícios de cansaço na voz há pouco recuperada de uma rouquidão, fizera o inventário das últimas viagens em companhia das colegas do mesmo ofício. O motorista concordara com tudo, rindo com detalhes banais. Carecia também mostrar a memória com lembranças frescas. Godinho, com os braços cruzados, nada dissera; não podia, não tomara parte nas viagens de Branca. Alheou–se de propósito, conseguiu pôr–se longe dali, inda que sentado no banco da frente, junto ao motorista. A mãe de Branca, junto com a irmã, não soltara um pio. As duas, octogenárias, meio que rendidas à idade. Súbito, Branca dera um tapa amistoso no ombro de Godinho; não logrou a interação do marido na conversa, mas um susto que sacudiu–o nas entranhas e nos sentidos. Desfaçatez, pensou. Branca prometera voltar no dia seguinte; assim o fez. Godinho aproveitou–se da peroração da mulher com o motorista, e saiu. Carecia desatar o nó da garganta. Branca, no carro com o motorista, chamou–o ao vê–lo do outro lado da rua. Por certo dar–lhe–ia um beijo; carinhoso por certo, mas um consolo. Ele seguiu seu caminho, recusando com uma das mãos. Godinho caminhou meio sem rumo, calhou de dar com um amigo de infância no terraço de uma casa. Jam e Lídice receberam–no com abraços e uma garrafa de uísque. O resgate da infância, ali mesmo em Acaú, deu–se ruidoso e teatral. Godinho mencionou Branca, sua conterrânea. Ele não conseguiu resgatá–la nos bancos da escola de Nair Freitas, a diretora que nutrira a docilidade de Branca com afagos na cabeça, e exorcizara a rebeldia de Jam com o queimor da palmatória nas duas mãos. Branca retornaria à tarde, dissera à mãe pelo telefone. Godinho deitara–se logo após o jantar com a sogra e a meia–sogra. Deixara a janela do quarto aberta, queria ver a aurora de Acaú, há muito sumida de sua memória. A sogra fechou–a, mesmo com grades de ferro de cima a baixo, de um lado e de outro. Medo de ladrões, disse espremendo as pálpebras nos olhos. O dia chegou sem que Godinho sorvesse o seu viço. Ele sentiu–se adolescente vendo as duas comendo bolachas depois de embebê–las na xícara com café. Às dez horas, disse às duas que iria ao supermercado para comprar sabão em pó e um pente. Perguntou se queriam que trouxesse alguma coisa. A sogra, com o embaraço dos anos, referiu–se à macaxeira, dois quilos de macaxeira. Ele comprou tudo e mais uma garrafinha com trezentos mililitros de uísque. Inda que se sentindo estranho na casa da sogra, quis mostrar–se disposto a interagir na rotina. Saiu outra vez para comprar peixe; deu sorte e encontrou uma residência vendendo pescadas e pampos. De volta, a sogra queixou–se da água que secara na caixa em cima da casa. A bomba sob a pia da cozinha, ela não sabia usar. Godinho ligou–a despejando água no interior da bomba, cujo fundo ele desparafusou. Satisfeito, interativo, saiu para Pontinha, na margem de um canal onde pescara na infância. Bebeu todo o uísque e pediu mais, convencido de que conseguira trazer de volta o cenário de sua infância. Godinho manteve–se dócil às imprecações de Branca, e exorcizou os trezentos mililitros de uísque. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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