Os olhos verdes no rosto moreno de Ruteana dão-lhe um acento indiano; os cabelos lisos, repartidos ao meio, estirados para trás, dão conta do capricho de sua extração. Com formas tão arredondadas, do rosto aos pés, não carece de sorrir para repercutir algum prazer; a suavidade da boca, deixando entrever a juntura precisa dos dentes, é uma festa serena para o bulício dos olhos de quem a aprecia. Ela parece, no entanto, não perceber o efeito que sua presença causa, principalmente em quem a enxerga pela primeira vez. Deu-se que no começo do verão, viu-se convidada para um sarau. Teria a chance de conversar ou, se preferisse, de tão somente ouvir a conversa de intelectuais que, mesmo sorvendo com voracidade o texto literário de um autor clássico, só se davam por felizes depois de repercutir um parecer com a mesma gravidade que supunham ter distinguido no texto. Ruteana, com a aprovação muda do marido, vestira-se com uma seda transparente, dos ombros aos pés, deixando ver o tecido de algodão fino, com flores miúdas, em perfeita combinação com seu corpo de contornos pequenos e precisos. Não precisava pentear os cabelos, tamanha a docilidade de cada fio só com os toques de seus dedos; ainda assim, usou a escova para cumprir o ritual após se ver tão elegante na frente do espelho. - O romance de Leonardo Padura reproduz o assassinato de Trotsky. É um romance, mas a narrativa funde a estética literária com o estilo do ensaio. A citação excessiva de datas remete a um texto da história recente. Cipriano, sem que ninguém o inquirisse, deu seu parecer sobre o autor cubano. Degas nunca lera Leonardo Padura. Deixava-se enredar pelo sabor da estética literária. Feito uma sentinela atenta numa guarita de segurança, picou-se pelo instinto político. - A quem serve mais o romance, a stalinistas ou a trotskistas? - O autor se move acima das duas correntes. Não fala em degeneração capitalista na União Soviética, mas diz, pela voz do narrador onipresente, que houve “perversão da utopia”, já a partir de Stalin. - E a forma como Trotsky foi morto, como ele narra? - Não sei repetir suas palavras, mas toda a página referente à picaretada tem um transe hipnótico de cima a baixo. Ele descreve com minúcia angustiosa. Um silêncio rápido se fez sentir, tamanha a densidade da inquirição muda de cada um, inclusive do marido de Ruteana. A silhueta indiana de Ruteana deixou escapar um sorriso tão insólito quanto forçado. Todos viram, desculpando-a sem o uso da palavra, por se mostrar ignorante ante um episódio que repercutiu na fronte de todos os revolucionários do mundo. Episódio grave... Não na fronte de Ruteana. Percebendo a severidade em cada rosto, forçou o sorriso por mais uns segundos, catando a chance vã de ver escorregar um traço de sorriso em algum olho. Nem o marido olhou para ela. Ruteana olhou para seu pulso, deu-se conta de que não trouxera o relógio; sentiu-se desnuda em toda a macieza do braço azeitonado. Cruzou os dois braços e agachou o tronco miúdo para se apoiar no próprio regaço. Havia humildade no gesto, inda que para disfarçar a rendição à gravidade a que se deixara julgar. - É um romance de fôlego. - retomou Cipriano - A leitura provoca angústia, e este é o maior mérito do livro. - E o perfil de Ramon Mercader? - Um revolucionário que lutou ao lado dos republicanos, na guerra civil espanhola. Foi recrutado pela NKVD. Treinado, tornou-se frio por estar convencido de que prestaria um serviço à revolução proletária. Ruteana, ouvindo Cipriano, assentiu com a cabeça. Mesmo que Cipriano tivesse dito que Ramon Mercader saíra das páginas do romance para lhe dizer por que fizera uso de uma picareta de alpinista, Ruteana teria acreditado. A conversa no terraço da casa de Cipriano animou-se, regada ao uísque. Ruteana levantou-se em direção ao sanitário. Na sala, sobre um móvel com retratos e livros, viu um relógio de pulso tão reluzente quanto seus olhos à luz do verão estreante. Mirou-o sem esconder a cobiça, convencida de que a trama que levou à morte de Trotsky, com pormenores de angústia, era a única preocupação de Cipriano, a esposa que lhe indicara o caminho do sanitário, Degas e o marido da indiana. Na noite do Natal, Ruteana e o marido voltaram à casa de Cipriano. Ante o silêncio dos anfitriões, ela riu além da conta. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
|