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Contos
02/02/2014 - 12h00
Constancinha
Marco Albertim
 

A bem dizer, o sobrado, tão antigo quanto a igreja ao lado, carecia de reparos. Não que tivesse com o reboco caído, mas a parede alta e comprida de sua lateral, tinha ondulações de cima a baixo na brancura sumida da pintura. As duas janelas, as únicas do mesmo lado, tinham frinchas no rebordo interno e no que dava para a rua; em que pese o suporte do tronco robusto de Amparo Gordilho.

Nos fundos, a coberta de telhas dando abrigo ao terraço, era sustentada por colunas redondas, entre a varanda de alvenaria e o madeirame da viga em apoio aos caibros e ripas sob o telhado. Embaixo, na rua, quem pusesse os olhos na área sombreada, não teria o desejo de espreguiçar-se numa rede amarrada aos caibros; sentiria assombro ante o acúmulo de musgos soltando o cheiro de cogumelos úmidos.

Amparo Gordilho ali crescera, casara-se e se deixara engordar feito um boto no viveiro. Não tivera filhos por razões de esterilidade. O marido, Clóvis Beviláqua Gordilho, mantivera-se franzino por razões de herança genética; a mesma herança teve na bolsa escrotal, tendo apenas um testículo. Os dois, cada um carregando sua insuficiência, contentaram-se com a minguada dádiva de Santo Onofre, no dizer de Amparo Gordilho; inda que não recusassem benesses a um afilhado ou afilhada, ou mesmo a um bassé de estimação, onde pusessem uma das mãos carentes do filho que nunca conceberam.

Lourdes Gonçalo, a negra da cozinha, também se deixara encolher no sobrado dos Gordilho. Casara-se, tivera filhos, àquela altura já casados; tendo experimentado os encargos de ver os filhos crescer, pouco sofreu com a morte do marido. Hoje, no mando solitário da rotina da cozinha, não se acanha de repetir a música que aprendera na juventude:

Quebra
Quebra Guabiraba
Quero ver quebrar...
Quebra lá
Que eu quebro cá
Quero ver quebrar...

Afrânio Sulapa, sobrinho do casal, voltou para o sobrado já com vinte e oito anos. Durante quatro anos de sua adolescência, crescera sob a proteção dos tios. Chegou sem avisar, com mala e um par de óculos nos olhos. Subiu a escadaria de madeira, entre duas paredes com as mesmas ondulações da parede externa; num delas, o corrimão de madeira, preto, ensebado.

Lourdes Gonçalo nunca saía da cozinha; mesmo quando na panela o feijão cozinhava sem os cuidados da colher de pau em sua mão, sentava-se no batente da porta de acesso à cozinha, misturando a fumaça do cachimbo ao cheiro fumegante da panela no fogo. Amparo Gordilho, lenta, apeou-se da cadeira de balanço na sala, junto ao marido. Abriu a porta no limiar da escadaria, e deu com Afrânio Sulapa, assustando-se com seu bigode basto. O moço, a bem do susto que deu, riu, mostrando a boca com a dentadura compacta. Abraçaram-se. A tarde correu lenta, inda que regada a suco de jenipapo e broas de milho, familiares a seu olfato. Na sala de jantar, viu o mesmo retrato na moldura, na parede, ao lado do relógio com badalos agudos; no retrato, um moço no cavalo, tocando uma viola para uma moça de vestido longo, cabelos em cachos. Quis ir para a sala da frente, sentar-se no sofá de madeira, com respaldo e assento lisos, inda que raramente usados.
 – Não! – objetou Amparo Gordilho – Naquela sala só há retratos de quem já morreu.

De um lado e de outro da sala, as molduras com os retratos dos pais do casal; nos cantos dos caixilhos, o gesso entre os retratos e a madeira, aqui e ali caindo os cascalhos. Num dos quartos da frente, junto à parede vizinha à casa ao lado, a porta nunca se abria. Ali vivia Constancinha, espreitando a própria sombra. Quando no sobrado não se ouvia ruído, ela saía para observar a rua da frente, mostrando apenas os dois olhos e a testa alta, abaixo dos cabelos grisalhos, nunca amarrados, posto que não se expunham ao vento. Dali, Constancinha tinha noção de como os moços cresciam diferentes, sem o cheiro de mofos que havia na sua clausura.

À noite, Afrânio Sulapa instalou-se na mesma cama onde tivera sonhos de adolescente. Fechou os olhos para dormir. O quarto ficava paralelo ao de Constancinha, na outra extremidade da sala. Lá para as tantas, teve a impressão de que dois olhos o espreitavam com rara curiosidade. Levantou-se, foi para a porta de acesso à sala. Deu tempo de ver, na claridade pardacenta da sala, duas pernas curtas correndo com esforço, cobertas por uma saia sem cor, estirada a ponto de cobrir um dos pés, manco, arrastando a borracha das sandálias.

Afrânio Sulapa nunca entrara naquele quarto. A tia só lhe dissera que era o baú com as quinquilharias da família.

Constancinha nunca apreciara de tão perto, um rosto bonito como o de Afrânio Sulapa.

Antes que a luz solar entrasse de vez no quarto de Sulapa, Constancinha ergueu-se da cama, atravessou a sala, esgueirou o pescoço e viu o rosto sereno do rapaz prurindo-se no resto do sono.

Sulapa abriu os olhos de vez. Viu um rosto amarelo, descarnado, uma boca sem mostrar os dentes, os lábios fechados, apertando-se para dentro da boca. Os dedos curtos da anã, com dobras sinistras entre as juntas, ainda tatearam os cabelos de Afrânio Sulapa.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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