25/11/2024  04h00
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Contos
25/01/2014 - 15h00
Emagrecimento
Marco Albertim
 

Chico Pousadas escrevera no seu diário que há seis meses vinha tomando vinagre para emagrecer, uma colher de sopa todas as manhãs, em jejum, mesmo sem ter ingerido qualquer alimento calórico. Vinagre de álcool, nocivo a seu fígado já intumescido pela ingestão diária de uísques. O vinagre, em que pese a acidez, dava-lhe o prazer de sentir as camadas de gordura do corpo, encolhendo, sem resistência a seu propósito de perder vinte quilos em um ano. O gordo Chico Pousadas tinha cento e vinte quilos.

Numa manhã de janeiro, inda que o verão se anunciando com o sol incidindo luz nas flores do flamboaiã nos fundos de seu quintal, a chuva molhou a copa e os galhos mais baixos da árvore; com a chuva minguando, o sol voltou a zunir; os galhos do flamboaiã, apoiando a juntura das folhinhas redivivas, também incidiram brilho nos olhos escuros de Chico Pousadas.

Legitimando a lona da espreguiçadeira com a armação de mogno, sentou-se meio deitado; a lona não rangeu. Chico Pousadas convenceu-se de que o móvel, no surdo conluio com o vinagre, acumpliciara-se com seus desígnios.
– Anísia! – não gritou, mas com habilidade juntou autoridade e prazer, sentindo que o cessar da chuva, o flamboaiã redivivo e a solicitude da esposa com a garrafa de uísque em sua direção, tudo, até a quietude do vento vindo do sudeste, era um concerto de boas-vindas a seu ritual de todas as manhãs.

Convém acentuar o perfil de Anísia, visto que há trinta anos decidira se casar com Chico Pousadas, então não tão gordo quanto agora, sentado na espreguiçadeira, sorvendo o perfume do flamboaiã. Chico Pousadas nunca fora esbelto, mas a habilidade de juntar palavras cumprira, sem confessar, o ofício de encobrir os defeitos do físico. Anísia, exibindo uma cor amendoada no corpo franzino, inda que nariz, boca e olhos na mesma proporção do rosto triangulado, não era bela, nunca fora; dir-se-ia que suas feições, incluindo a lisura dos cabelos na altura dos ombros, interromperam a transição da indefinição dos traços, ali estacionaram para dar conta apenas da intenção de se tornarem belas.

O casal tivera tempo e disposição para gerar três filhos; os dois mais velhos, sem mostrar qualquer traço de herança genética do pai, cresceram sem excessos em cada um dos troncos; o mais novo, melhor dizendo, a mais nova, com vinte e um anos, a mesma idade do flamboaiã, não tinha nada de luzente no rosto papudo, nos quadris largos, nas pernas com inchaço precoce; do pai, também lhe coubera a viveza de espírito. Não repetia pilhéria dos outros, tão comum a espíritos com pretensões de originalidade; dizia-as no calor das palavras, fitando o interlocutor nos olhos, sem cálculos e misturando palavrões, inda que roçassem a virilidade moral de Chico Pousadas.

Descanse o corpo mas não poupe a papa que me fez nascer – disse uma vez ao pai, entornando um gole do mesmo uísque e mirando nos olhos submissos da mãe.

Anísia assistira sem inquietação o crescimento dos filhos, sem sustos com os indícios de carnosidade em Ivete. Chico Pousadas, com uma preocupação sem forças para deter o apetite do estômago, engordara e conveio que dormir na cama do casal doía-lhe mais que acomodar as ancas na espreguiçadeira; até para se levantar, Anísia, com o braço estendido ao marido, teria que fazer pouca força no corpo miúdo.

Depois do terceiro uísque, Anísia, a pedido do marido, trouxe-lhe o diário. Não tinha segredos com ela. E Anísia prelibava-se nos escritos da intimidade do marido, compensando-se da escassez dos contatos carnais.
– Leia o que eu escrevi ontem à noite. Chame Ivete. Quero que ela ouça também.

Chico Pousadas sentiu calor. Pediu que Anísia o ajudasse a tirar a camisa. Ivete sentou-se ao lado do pai, sorvendo o suor de seu tronco.

“Tomo vinagre todos os dias para emagrecer. Não vou emagrecer, mas dou provas de que resisto e acho graça na ingenuidade de Anísia e de meus filhos. O uísque me dá mais prazer. Sinto juventude no gelo misturado ao uísque. A papa que Ivete me gaba dorme inativa nos escrotos. As calorias impedem-na de ruir para fora. O coração, tão mole quanto a papa, bate preguiçoso. À noite, quando fecho os olhos, sinto que o coração também tem sono. Inspiro e solto o ar com a boca. O coração se reanima. Não demora e vou secar minha gordura numa gaveta mortuária.”

Ivete removeu o suor da testa de Chico Pousadas com a mão; umedeceu os dedos com um líquido frio, quase gelado.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CONTOS"Índice das publicações sobre "CONTOS"
20/12/2022 - 06h19 Aquelas palavras escritas
20/10/2022 - 06h07 Perfil
30/06/2022 - 06h40 Ai eu choro
13/06/2022 - 06h32 Páginas de ontem
31/05/2022 - 06h38 É o bicho!
24/05/2022 - 06h15 Tocaia
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.