25/11/2024  06h39
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Contos
11/01/2014 - 09h00
A mulher do detento
Marco Albertim
 

Não se perdeu no vento o relato de Janine. Ela aproveitou o sopro vindo do sudeste, sentou-se no calçadão do armazém na beira do cais, convicta de que a surragem no morim do vestido, tinha tudo a ver com o reboco estropiado das paredes do armazém. O amarelo sem cor das paredes, nem com o apuro dos olhos seria restabelecido; só a memória do que fora restituía a elegância sem brilho da ponte giratória no cais de Santa Rita. Do mesmo modo, os desenhos de flores sumidos do morim sem cor do vestido de Janine, a custo davam vida ao desassossego moreno de suas carnes, quando entrevira a chance de se ver livre da incômoda virgindade.

O vento encobriu o choro sem agonia nos seus olhos miúdos; pressionou-os para as entranhas da memória, onde afoiteza nenhuma tinha o direito de fazer pouco do que, por opção própria, juntara sem sustos para não perder o culto da vida em grupo. Ninguém, nem mesmo a coragem fria dos detentos do pavilhão C.

Com as flores luzidias no morim então novo, ela saiu da cela onde confabulara com Babão. Pôs o dinheiro acima do bico do peito, entre a carne tenra e a almofada do sutiã. Dois carcereiros, um em cada pavilhão, abriram a cela do respectivo corredor. No primeiro, do C, o homem de feição tão amarela quanto a de cada detento, só olhou-a nos olhos, evitando adivinhar os contornos do corpo baixo, inda que torneado, mas familiar à inquietação dos dedos de Babão. No segundo, vizinho ao pátio àquela hora vazio, outro carcereiro tinha a mesma feição. No corredor entre as celas de um lado e de outro, os presos enxergaram as ondulações do corpo de Janine; nenhum teve coragem de acoitar a esperança de, com a pena reduzida, estender-lhe o incerto e tão cotado pano, proteção que todo preso miúdo ou parente busca para não sofrer embaraço de bandido sem código de honra, ou mesmo de polícia sem lugar no catre.

No portão de saída, antes de cruzá-lo, foi conduzida por policiais femininas a uma sala. Havia quatro, duas trancaram-se com Janine para a revista de rotina. A mais velha, com uma infusão de rigor e lascívia nos olhos, apalpou-a nos peitos. A minúcia dos dedos fez o rastejo de baixo para cima, para precisar a redondez lobular dos seios. O contato da sequidão da mão da mulher na maciez dura dos seios de Janine, ela o ignorou com os olhos fixos na imprecisão dos próximos passos de sua vida.

A outra, também urdindo bulício nas mãos e autoridade na fronte, apalpou-a sob a parte de baixo do morim nada encardido. Enxergou, com lubricidade nos olhos sob as pálpebras pesadas, um chip de celular. A mais velha fez-lhe um gesto, descendo de cada um dos cantos da boca, o indicador e o dedo polegar. O ricto da advertência incensou a sala com o espectro de Babão. A cédula de cem reais fora tateada pela guarda mais velha; sabia de onde viera o dinheiro e inquiriu-a para compor o ritual da revista.
- É para comprar as carnes – respondera Janine, não a modo de retruque, mas para acrescentar à fita.

- Alcatra. Dois quilos.

O açougueiro reiterou nos olhos a mesma cumplicidade dos carcereiros; sem atentar para os contornos do corpo de Janine, espreitou-a como a uma freguesa de paga sem vexame, com dinheiro vindo das entranhas do tráfico. Por conveniência, não quis saber o seu nome, nunca quisera. Devolveu-lhe o troco com a mesma minúcia de gesto de quando Janine bacorejara a bufunfa do sutiã.

De volta ao presídio, entrou na sala para submeter-se à encenação; agora com fastio nas mãos e preguiça nos olhos. As polícias apalparam-na sorvendo o cheiro da alcatra tenra. Não quiseram examinar o pacote com a carne. O cheiro de carne sangrada ocuparia o lugar das vísceras nunca emprenhadas de Janine.

Na cela, Babão ordenou a Lula que tratasse de moquear a carne na grelha de ferro do pavimento de cima. Logo, à noite, seria comida a modo de churrasco. Lula obedeceu, tirando do armário o sal, uma faca e o cominho. Ainda assim, Babão cuidou de puxar a cortina entre seu catre e o de Lula. A alcatra deixou no cheiro indícios de sangue. Babão entreteve-se na cumplicidade das carnes vivas de Janine.

No fim da tarde, o vento parou de soprar no cais de Santa Rita. À luz do poste, ela examinou sem vontade a foto de Babão no jornal, morto, um só tiro na moleira.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CONTOS"Índice das publicações sobre "CONTOS"
20/12/2022 - 06h19 Aquelas palavras escritas
20/10/2022 - 06h07 Perfil
30/06/2022 - 06h40 Ai eu choro
13/06/2022 - 06h32 Páginas de ontem
31/05/2022 - 06h38 É o bicho!
24/05/2022 - 06h15 Tocaia
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.