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Contos
22/12/2013 - 15h22
No Pátio do Terço
Marco Albertim
 

Sob a marquise do armazém, Anatólio sentou-se como todos os dias. Cruzou as pernas magras, expondo a crosta de perebas acima dos tornozelos finos. A bermuda comprida, com desenhos de tulipas azuis e espaços em branco entre uma e outra, distinguia-o dos outros.

Dois ou três moleques não tinham permissão de sentar na mesma calçada de Anatólio; só na paralela, à sombra do paredão sombrio da igreja, onde musgos e toda sorte de fungos infundiam em quem ali buscasse abrigo, a aparência e o bafio semelhantes.
- Vocês não podem vir para o lado de cá. Senão o segurança me expulsa daqui – advertira os moleques menores, de bermudas de pano tão roto quanto as pontas das unhas de seus pés.

Nos ombros, inda que franzinos, Anatólio dava conta de um blusão preto, com zíper na frente e capuz atado nas costas. O apetrecho perdera o negrume da cor, acinzentara-se; ainda assim conferia-lhe autoridade na hierarquia dos sabujos.

Ao meio-dia, as pernas mantinham-se cruzadas. Se mantivesse os joelhos para cima, as pernas juntas e coladas às coxas, por certo teria que baixar o rosto uma vez ou outra, nem que fosse escondendo metade do rosto entre as junturas dos joelhos; e isso... Ora... isso reavivaria a suspeita dos seguranças de que, amealhando os centavos de um ou outro cliente do armazém, também ocultava-se da polícia. O andar lento dos polícias, as incursões inconfessas, ora espreitavam a bonacheirice dos donos de lojas, ao fim de um turno sem tropelias de roubo; ora espreitavam nos moleques pedintes, os urdumes de um arrombamento já feito ou por fazer.

Ao meio-dia, Anatólio juntara dinheiro suficiente para comprar a pomada que ressecaria as perebas vivas. A coceira roçando de baixo a cima dos pés, atenuada nos riscos cinzentos deixados pelas unhas compridas, dava-lhe uma trégua apenas no ritual das unhas. A sugação da língua gretada de sede, nos dentes roídos pelas cáries, compunha o simulacro de alívio. Levantou o corpo comprido, assustando ainda mais os olhos em miniatura dos pivetes do outro lado. No Pátio do Terço, virou à direita para a rua das Águas Verdes. Os pivetes seguiram no mesmo caminho. Anatólio não se importou. À noite dormiriam no chão de cimento do casarão do Cais de Santa Rita, cobertos por papelões cheirando a papel queimado, tão ou mais familiar ao olfato de cada um, quanto a viveza destilada com o sorvo profundo da maconha.

Com a bufunfa miúda no bolso da bermuda, creu-se com o juízo tão enfermo quanto as perebas; isto se voltasse a gastar o dinheiro com a pomada que ainda não dera sinal de coragem na briga com as lesões. Entrou na farmácia com prateleiras antigas, de madeira, com desenhos tão curvos quanto os vidros de remédios sem tampas fixas. O dono, com uma bata branca cobrindo o peito e a cintura, o bigode basto, meio amarelo de tanto cheirar as drogas de seu próprio fabrico, olhou para as canelas de Anatólio.
- O que tu queres, moleque? Cura para a escabiose? Não tem cura no teu caso, já que não sais das bactérias dos esgotos. Dou-te mesmo assim extrato de mercúrio bruto. Vai arder. Mas não vais reclamar, já que tens fogo nas vísceras e nos olhos chamuscados pelo cânhamo.

O boticário de fala procelosa encheu Anatólio de crenças, esperanças imprecisas, mas crença na chance de que em seus ouvidos alguém infundisse uma lição nova.

Anatólio segurou a droga na miniatura de bisnaga, sem rótulo e tampa de rosca.
- Pinga por cima e em volta de tuas gangrenas – sentenciou o boticário.

Com o dinheiro garantido na inhaca do bolso, apressou os passos para a bodega da esquina, uma baiúca onde o cheiro do feijão com charque gordo também espalhava vapores do melhor prazer, o do revolvimento das entranhas. Anatólio e os pivetes, feito tropeiros em descanso, sentaram-se no meio-fio, sob um castanheiro ainda basto de folhagem. Duas horas depois, a cozinheira saiu pela porta do lado, sem contato com o balcão de atendimento. Deu-lhes os restos de comida; não restos deixados nos pratos usados pelos fregueses, mas resíduos grossos de arroz, macarrão, removidos do fundo das panelas. Por cima, restos de carne e o molho gorduroso.

À tarde voltaram para as calçadas paralelas, no oitão da Igreja do Terço. As lojas fecharam às sete horas. Antes de as portas do armazém serem fechadas, Anatólio e os pivetes viram saindo, mostrando dentes tão ou mais avariados quanto os seus, dois polícias sem farda.
- Agora vamos tomar cerveja no Pátio de São Pedro – disse o da frente.

Depois, vendo que Anatólio se mantinha sentado, bateu com as palmas das mãos, feito tangerinos de gado.
- Recolhe, excomungado! Recolhe que já é hora.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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