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Contos
03/11/2013 - 12h25
A dama de vermelho outra vez
Marco Albertim
 

A patrulha da Polícia Militar interrompeu o trânsito sob o viaduto. A multidão, aos gritos, exigia o rompimento de outra patrulha, na avenida Agamenon Magalhães. O propósito era ter acesso ao Centro de Convenções, onde o governador despachava com secretários. Em cima do viaduto, um ralo ajuntamento de cinegrafistas, tirando proveito da ausência de automóveis, gravava o confronto entre moços estudantes e soldados empunhando escudos de acrílico. No fim da tarde de inverno, com chuvas encolhidas em nuvens escuras, o protesto pareceu esvaziar-se no minguado grupo cujos gritos, de tão sonoros, davam conta de uma agonia inconfessa.

A patrulha sob o viaduto, de uma ponta a outra das duas vias, uma com acesso ao Recife e outra no rumo a Olinda, manteve-se inflexível no propósito de não permitir a multidão na avenida Cruz Cabugá, onde o Shopping Tacaruna ostenta um luxo capaz de despertar a cobiça de pobres e a sanha de Black Blocs.

Uma mulher de vermelho seguira a marcha do protesto desde o começo, no principal cruzamento da Praça do Derby. Espreitara sem estranheza, inda que com indagações no juízo incauto, uma mocinha com a prenhez exposta onde se lia Eu quero uma nova vida; uma dúzia de moços, sentados em círculo no meio da ponte sobre o canal, cabelos emaranhados em rostos convulsos, fazendo uso coletivo de uma grossa liamba. O jargão chulo zumbira, incômodo, no código de honra da mulher. Observara, com traços de zelo nas pupilas luzentes, meia dúzia de deficientes, segurando cartazes com demandas próprias, sentados em cadeiras de rodas; em cada rosto, a crença de que a cidadania fora enfim recobrada. Não se assustara quando se vira em meio a quatro moços com rapapés adamados; riam, meio que debochados, do deputado Marco Feliciano, defensor da cura gay. No meio do percurso, em frente à favela da Ponte do Maduro, rebolos foram jogados na polícia; ninguém fora atingido, mesmo com o rumo cego dos petardos, incluindo manifestantes sem intentos de violência. A mulher, cuja silhueta do vestido vermelho distinguia-a feito um estandarte, assistira com os olhos serenos, os cabelos com mechas curtas, sem traços incivis. Exibira um sorriso cúmplice, ajuizando-se afim do padre Reginaldo, dos morros de Casa Amarela, cantando no megafone, com o mesmo ricto litúrgico nos beiços finos. Espreitara com a curiosidade sofreada, os mascarados nus da cintura para cima; as máscaras, lembrando o disfarce de assaltantes de banco, por certo escondendo desígnios predatórios.

No fim da tarde, o sol se pusera de vez. A cor cinzenta se fez acentuar, à medida que os gritos, já roucos, eram seguidos por uma respiração quase moribunda. O asfalto, sem a cobertura de carros ou de uma multidão compacta, mostrou-se frio, sem ter parte na mobilidade requerida dos estudantes que queriam o acesso ao governador ou a um dos secretários. A dama de vermelho, sem dar conta do talhe fino do corpo, compunha o rosto com os dentes à mostra, feito um tribuno com o discurso pronto, sem a chance de se fazer ouvir. O vento, vindo do mar, do rio Capibaribe que se embaralha com o mar ao lado do quartel dos marinheiros, não zuniu nos seus ouvidos. A água gelatinosa do canal, a crosta de gordura nas margens e os resíduos de lixo na superfície, não acanharam seu juízo inquiridor. Seu vestido, que luzira sob o sol no começo e durante a marcha, ainda insistia em fulgurar, inda que como um estandarte a meio-pau àquela hora.

A teima dos estudantes, o cordão de polícias, irredutível, os olhares sem esperança de quem optara pelo rebordo do viaduto para apreciar o cenário, nada, nem as mocinhas de shorts curtos com franjas esfiapadas tinham o viço do começo da marcha. A dama de vermelho, sentindo a dor do cansaço nas pernas, olhou para trás, para o alongamento da avenida em direção à Cruz Cabugá. O outro cordão de policiais, mesmo sem ser o objeto da teimosia dos manifestantes, mantinha-se imóvel na proteção do shopping.

Para voltar para casa, a dama teria que subir no ônibus, numa das paradas do outro lado do shopping. Difícil seria convencer o coronel no comando da patrulha, de que, apesar do lume vermelho de seu vestido, não urdira planos de depredação das lojas do shopping. Na Cruz Cabugá, o trânsito fluía sem interrupção.

Ela caminhou rumo ao cordão policial. Os homens de farda falavam entre si, nenhum com os dentes à mostra, nalgum arremedo de sorriso. Caminhou e parou no meio do percurso, sem olhar para os militares, mas para se fazer notar no propósito de atravessar a avenida.

A timidez da mulher, a brandura de seu rosto contrastando com a fisionomia dura dos PMs, os passos medidos sob o cetim vermelho, tudo nela era indício de que outra geração, madura, mais velha que os moços dos gritos, tinha aderido à peleja das ruas.

A patrulha se desfez. O vermelho rutilante do vestido da dama luziu sob a luz do poste.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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