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Contos
23/10/2013 - 17h03
O espião
Marco Albertim
 

Às oito da noite, inda que fosse um domingo, a praça em frente ao convento não abrigava ninguém sob seus fícus cinquentões. O cruzeiro de pedra, no centro, era só um vulto indistinto, com a redondez piramidal da mesma pedra de cantaria. Já as ruas de duas laterais da praça, iluminadas pelas luzes dos postes, davam conta de um movimento miúdo de gentes vindas do Baldo do Rio, ribeirinhos endomingados com chitas ordinárias, sem remendos. Viviam no breu de casas com paredes de barro, enxergando, à força do costume, com a luz mortiça de lamparinas e candeeiros; não iam dar tratos à quietação sombria de uma praça sequer com a piscação de pirilampos. As duas outras laterais da praça, uma em frente ao Convento dos Carmelitas e outra entre a calçada da praça e os muros de um colégio fechado, sequer eram urdidas por casais sôfregos de bolinagens.

O pórtico do convento, de carvalho com esculturas barrocas, fora deixado com a fechadura aberta. Um por um, os homens foram entrando, depois de cruzarem a vereda do meio da praça, tão familiar a seus sentidos brejeiros. Por ser um domingo, vestiram-se a caráter, não com chitas ordinárias, mas com linhos submissos ao primeiro contato de um ferro quente. Do lado de dentro, sentado num canto do largo quadrado de pedra em volta do jardim, um frade moço, de óculos com armação tão escura quanto sua batina, indicou-lhes a escada de acesso à sala da reunião. A luz escassa de um dos quatro corredores, deu conta da palidez cerosa de seu rosto.

Edgar Valongo quis ser o primeiro a falar, conteve-se para que não percebessem a excitação com que, junto com os propósitos, mostrasse a presa que tinha no bolso; conforme seu juízo, despojo que deixaria o inimigo sem trunfo na peleja ainda com final impreciso.

Sentados em volta de uma mesa redonda, coberta por uma toalha xadrezada, foram servidos de água gelada, trazida pelo frade moço, sem rebuços no rosto cravoso.
- Não temos nada do que esconder... Faremos uma campanha com base no apoio que temos do povo. – disse frei Tarcísio. A voz mansa espalhando a sonoridade mansa de quando dissera o te deum da missa pela manhã.
- Estão trazendo doações para a campanha; roupas, sapatos – atalhou José Veloso.
Ao enumerar cada item, esticava delicado os dedos da mão, feito um professor zeloso da própria didática.
- O que vamos fazer com as doações? Comprar votos? Isto o outro candidato está fazendo, até dinheiro estão distribuindo para a compra de votos... – advertiu Aderico.

Não se propunha a falar nos comícios; segundo ele, para não dar margem a suspeitas de que a campanha seria o pretexto para fomentar a subversão. De todos, fora o único a viajar para Cuba, quando a ilha ainda depunha os restos do governo de Fulgêncio Batista.
- Estão todos seguros de que esta reunião não está sendo vigiada por alguém em algum canto da praça? O tenente Câmara adverte os soldados do Tiro de Guerra de que a subversão pode estar escondida até mesmo sob uma batina. Todos os dias!

Edgar Valongo fora o único a chamar a atenção para os riscos de que a campanha poderia ser impugnada, caso fosse descoberto um indício de conluio contra a lei de segurança nacional.
- Como você sabe disso? – quis saber José Veloso.
- Meu irmão está servindo no Tiro de Guerra. E o tenente Câmara conversa comigo.

José Veloso e Edgar Valongo há muito vinham respondendo a um Inquérito Policial Militar. Valongo, tão mofino quanto o nariz de gralha e os esses sibilantes dos plurais afetados, mantinha conversas amistosas com o tenente Câmara.
- Estou pedindo a ele para aliviar nossa situação no IPM – acrescentou, certo de que poderia conseguir o afrouxamento da vigilância do militar sobre a campanha para prefeito de Goiana.

Na noite seguinte, no comício da rua Santa Teresa, em frente à ex-sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, frei Tarcísio, com a mesma mansidão com que cantara o te deum, mencionou o exemplo da revolução francesa como ilustração de como um povo pode urdir sua sorte.

À tarde do dia seguinte, finda a instrução no TG, o tenente Câmara inquiriu Edgar Valongo, depois que este lhe mostrara o livro contendo o retrato de Aderico numa rua de Havana, junto a um guerrilheiro com a metralhadora no ombro. O livro fora tirado da estante do TG, por sugestão do tenente.
- Leve. Diga que tirou da estante quando eu virei as costas para você. Proponha que queimem o livro para esconder a prova de que Aderico é comunista...


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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