Fácil foi entrar na pensão de madrugada, sem ser notado pela proprietária. Sequer um hóspede se deu conta de que William Basquental, trajando calça marrom e camisa da mesma cor, subiu a escada helicoidal, de madeira, sorvendo os fungos da parede sem cor, de tão desbotada, e pouco se importando com a inhaca do próprio suor na roupa, infectando a sala de atendimento a hóspedes. A porta do sobrado fora aberta por Lucas Fazenda, hóspede não tão antigo, mas com ficha assentada nos registros da casa e nenhum atraso no pagamento ao fim de cada mês. Meia-noite. A proprietária, zelosa da ordem social, por certo não permitiria que um hóspede fizesse uso de um aposento, sem assinar a ficha de hóspede; a ficha e o pagamento do primeiro mês adiantado, nem que fosse uma parte. Dormia, a velha, no quarto da frente do sobrado, pavimento térreo, único com piso de cerâmica; um piso tão frio quanto o olhar inquiridor da velha viúva. - A velha não vai desconfiar de você. - dissera Lucas Fazenda a William - O problema é que se você assinar a ficha de hóspede, o documento será enviado à Secretaria de Segurança. Aí caímos os dois. Os dois tinham relógio; deixaram o tempo passar sem espreitar os ponteiros. A cachaça fora servida num boteco próximo, na rua do Príncipe, cuja estreiteza era acentuada por quarteirões apinhados de sobrados antigos. O próprio dono servindo-os, sentado do lado de dentro do balcão ensebado, a barba por fazer, o cabelo repartido ao meio com trunfas caídas em cada um dos lados da testa. Não havia fogão com comida em panela. William e Lucas, fingindo acumpliciamento com a promiscuidade do boteco, mastigaram com indiferença a sardinha tirada da lata. - Tenho cebola - informara o proprietário, para dar conta de que o estabelecimento não era tão avesso a assuntos de cozinha. Em seguida, cortou-a em rodelas, despejou vinagre no prato e serviu. Os dois comeram depois de duas rodadas de cachaça. A conta paga, o troco foi dispensado; não que tivessem dinheiro sobrando no bolso, mas convinha aparentar despreocupação com a rotina difícil de assalariados com poucos recursos. Toda a rua do Príncipe foi percorrida sem pressa, também para dar a impressão de que pouco se importariam se fossem espreitados por alguma viatura fazendo ronda. Antes de abrir o portão de ferro do sobrado, depararam-se com uma viatura da PM estacionada na esquina da avenida João de Barros, frente a frente com a avenida Suassuna. - São tiras - dissera Lucas Fazenda. - São da PM. Os da PM não são tão farejadores quanto os civis do DOPS. - Menos mal. Quando entraram no portão, os PMs, convencidos por certo de que não estavam espreitando notívagos sem rumo, deram partida na viatura. Agora, já no pavimento de cima do sobrado, tiveram o cuidado de pisar macio o chão de madeira gasta. Duas camas no quarto, com colchões ainda não tão amassados, inda que de palha. William Basquental pôs num canto da parede, sua tiracolo com pertences miúdos. Lucas Fazenda acendera a única luz; não alumiou todos os nichos do aposento. William viu o livro na cabeceira ao lado da cama de Lucas. - Cem anos de solidão - William repetiu o título, sopesando com os dedos a lombada dobrada do livro. - É para você ler. Amanhã vou sair para trabalhar. Você terá que ficar na cama deitado, sem fazer ruído. Todo o corredor tem paredes de madeira nos quartos. Conheça a solidão de Aureliano Buendia e acostume-se com a sua. Dormiram aliviados, convencidos de que cumpriam zelosos o ofício de conspirar em silêncio. Às cinco horas, um fio abafado de luz entrou na janela do aposento. William foi o primeiro a pressentir, porquanto não se habituara de vez ao quarto. Lembrou-se da sardinha que comera no boteco, a cebola misturada ao óleo. Não calculara que também o intestino tem memória. - Onde é o sanitário? - perguntou a Lucas Fazenda. - Você terá que descer. Fica nos fundos do quintal, por trás da cozinha. Não tem chave na porta, só o ferrolho. - E a velha? - Ainda está dormindo. Desceram juntos. Lucas subiu para dar conta dos restos de sono. Ao fim de alguns minutos, William, aliviado, abriu a porta do sanitário; pôs o primeiro pé na escada helicoidal. Sem se virar para trás, ouviu um sonoro bom dia de uma voz rouca de mulher. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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