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Contos
07/10/2013 - 09h00
A dama do cachorrinho
Marco Albertim
 

Uma dama ocupou uma das mesas do bar a pouca distância da mais próxima, onde dois moços, sem afetação na voz, distraíam-se numa conversa miúda. O rosto dela, de tão pequeno, quase ocultou-se sob os óculos de lentes chapadas.

O marrom claro das lentes, da armação, acentuou com graça a mesma cor de sua pele fina; com graça e mistério, posto que seu tronco de pequeno porte, zeloso da própria fragilidade, mal se movia para qualquer um dos lados; inda que se distinguisse de seu lado direito o sopro promissor de um vento cuja força apenas dava ritmo ao balouço de uma dúzia de embarcações na maré vazante, serena. A moça, trajando um saiote curto, com alças invisíveis sobre os ombros, um chapéu com abas curtas, deu conta do biquíni ao cruzar as pernas com elegância meio que fingida, inda que com decoro. O lugar, cuja quietude no meio da tarde só fazia preguiçar o juízo mole do proprietário, é o nicho que mais convém a homens e mulheres cuja rotina pouco se dá conta de demandas ruidosas em ruas e avenidas; ou, no máximo, assuntam-nas a modo de censura porque esbarram com a apatia de sua existência.

Com um gesto também miúdo, a dama, sem tirar os óculos do rosto, intimou o poodle de sua estimação a sentar-se na cadeira ao lado. Num pulo mudo, o cão aninhou-se na cadeira, pôs o focinho retangular sobre as duas patas da frente, cruzadas, e manteve os olhos abertos, por certo apreciando a indiferença marcial da dama a tudo em volta; apreciando-a com sujeição no instinto. A quietude do cão, sem grunhidos, causou certo bulício no juízo nada erradio dos três únicos homens no bar. Deve ter uma conta bancária tão lustrosa quanto seus óculos, pensou o bodegueiro; e ainda se nutrir dos paparicos do gerente. Se não for casada, não dá tratos à cobiça dos machos, visto que, do mesmo modo como sujeitou o poodle, pode sujeitar o galanteio de um suposto pretendente, deduziram os moços.

O dono do bar, com as costas largas, o busto vincado para trás e a cintura dando sustento a um estômago sem escrúpulos, interrompeu a quietação do juízo e acorreu à cliente de raro requinte; acorreu para imitar a astúcia do poodle, saiu-se tão pesado quanto um buldogue desajeitado. Saíra do lado de dentro do balcão, onde se sentara numa cadeira cujo assento e espaldar tinham o molde de seu corpo. Junto à dama, arquejou e disse:
- Às suas ordens...
- Um uísque, por favor.
No primeiro gole, ela acendeu o cigarro. O poodle seguiu o rito da pressão do polegar da mão direita sobre o isqueiro. O lume do fogo, miúdo, deu lugar a uma brasa viva na ponta do cigarro; dir-se-ia um fogaréu festivo no rosto da dama. A cor de seus olhos, até então era só intuída pelo bodegueiro e pelos dois moços no sorvo banal da cerveja.

Pediu a segunda dose. Na terceira, sem tirar os óculos, seguiu o andar sem perícia do proprietário. Estava de bermuda, ele, com chinelos de um couro tão luzente quanto as prateleiras de peroba envernizada nas duas paredes paralelas, e na do fundo. A dama enxergou com cálculo o aprumo das garrafas de uísque; a maioria da marca John Walker, a mesma que ela vinha bebendo sem dar conta de travo na língua. Não se deu o trabalho de observar as cervejas que os dois moços beberam, e continuavam bebendo para nutrir a banalidade do hábito. Inquiriu do proprietário sobre o cardápio. Ele o tinha de cor e salteado, mas preferiu mostrar as cores do menu, acrescentando o bacalhau como a maior proeza de seu ofício. Ainda sem mostrar a cor dos olhos, a dama aceitou a sugestão como para aquiescer à sugestão do chef...

Logo apareceu da cozinha uma mulher com o rosto sem cor, mortiço, curtido no vapor de panelas sobre o fogo. A dama reparou sem mostrar a excitação nos olhos.

O bacalhau foi servido numa louça comprida, inda que pequena, prateada. Os moços, comendo batatas fritas, serviam-se num prato de louça comum.

Depois da terceira dose, a dama levantou-se, foi ao sanitário. O poodle não a seguiu, depois que ela ordenara que não se movesse do assento. Levou sua bolsa, uma tiracolo branca, a mesma cor de seu saiote transparente. Não sentou-se na bacia da privada. Tirou o celular da tiracolo e ligou para dizer que já se servira de três uísques; arrematou dizendo:
- O bacalhau está um convite...

Não demorou dez minutos, três rapazes apearam de duas motocicletas, apontando armas para o proprietário, para os moços. A dama não se vexou. Ao pôr no braço esquerdo o poodle, moveu-se sem graça feminina, tirando os óculos do rosto para guardá-lo na tiracolo. Os gestos eram tão másculos quanto os fios invisíveis de barba no rosto ameaçador...


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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