25/11/2024  06h55
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Contos
08/09/2013 - 15h00
Um camponês narcisista
Marco Albertim
 

Debruçado sobre a mesa, pareceu que iria chorar. Levantando o rosto de vez em quando, esfregava o dorso da mão direita em cada canto dos dois olhos. Podia dar a entender que uma secreção incômoda o inquietasse, e era este o seu propósito; a catarata no entanto, com traços disformes, cobria os lados de cada olho.

Não o confessava, não depois que o enfarto paralisara-o no lado esquerdo do corpo; recuperara a mobilidade após exaustivas terapias; recuperara, inda que dando conta dos setenta e dois anos de vida, nunca mencionados antes do enfarto; mencionados eram os cinquenta anos de militância política, com testemunhos de quem, com não menos sacrifícios, dera a vida pela revolução e já constava da lista de heróis.
- Cincinato, me conte como foi o começo de sua luta.

Os anos não vergaram a vontade de Cincinato. Inda que o corpo, franzino desde a juventude, se arredondasse na cintura, os olhos davam conta de uma curiosidade sobre outro tempo; para manter-se como referência viva de episódios que os mais moços não tiveram a chance de testemunhar. A pele escura se curtira na testa larga. Os cabelos, igualmente juntos nos pixains pontudos, não se mexiam mesmo sob a inquietação da testa sulcada, dos cílios escondendo os olhos nervosos. Talvez usasse uma calça mais ajustada à escassez das pernas, uma camisa com pano bastante para assegurar a mobilidade à frente de uma assembleia de camponeses; e não as de agora, com o beiral abaixo dos calcanhares, sumindo sob a pressão dos sapatos de bico fino; e nada das camisas de hoje, com mangas abaixo dos cotovelos, sem ser costuradas para tal fim. Cincinato fora camponês com habilidade para se dissimular entre uma grota e outra, nas matas do Pará; ou para manter a moenda do Engenho Galileia rodando, ocupado por cortadores de cana e ex-tropeiros cansados dos cascalhos na piçarra.
- Não, Cincinato. Isso os livros de história já dizem. Quero saber com quem você conversava nas reuniões, onde se reuniam, como se vestiam, como faziam para conseguir comida. E como conseguiram escapar das armadilhas da polícia, dos jagunços...!

Ele comprimiu mais ainda a testa. Dos cantos da boca, não evitou que o cuspe baboso saísse espremido entre as comissuras dos beiços. Antes de falar, soltou das narinas calorentas o bodum do cachimbo que sorvera uma hora antes. Olhou para a parede a sua frente. O retrato de Karl Marx, com barbas e cabelos em desalinho, incitou-o a dizer sentenças, inda que não dando a cada uma o fato que servisse de suporte a seu acerto. Podia mirar-se como um comunardo, visto que trocara o culotte dos banhos de açude pela calça de brim grosso, o mesmo com que estreara nas assembleias do Galileia.
- Tome um cafezinho, Cincinato. Talvez esquente a sua memória de revolucionário frio.

Cincinato fugira do Maranhão para o Pará. Assumiu nova identidade para não ser preso; com outro nome, foi presidente do sindicato rural. Logo tornou-se conhecido dos jagunços e da polícia. Assim, teve que fugir outra vez. Sem que soubesse, deixou-se levar por certo infanticídio, porquanto não conseguiu se lembrar dos nomes de camponeses como ele, ou sob seu mando, seus pares nas ideias e nas roupas. Feito quem enxerga um letreiro luminoso, repetiu frases impressas com frequência nas brochuras sobre a história recente. Referiu-se à reorganização de seu Partido em 1962, ao debate ideológico, como se ele próprio, protagonista de então, fosse também o teórico em defesa do conteúdo revolucionário do programa de seu Partido.
- Você conheceu Maurício Grabois pessoalmente, Cincinato?

Não conhecera o velho de rosto comprido, nariz sem curvas sobre o bigode ralo. Emendou-se confessando, contrafeito, que fora chamado para reorganizar o Partido por dois outros, não do mesmo porte teórico de Maurício Grabois, mas que deixaram marcas de sangue. Os dois, acentuou, a mando do velho de rosto comprido.
- Zaratini foi torturado e fugiu do quartel dos Bombeiros. Capivara foi assassinado.

Ouvindo a menção de morte, não se deixou crispar por algum resíduo de lembrança de quem o acompanhara nas estreitas piçarras do Pará. Reiterou a morte de Capivara, para mostrar-se ileso depois de ter corrido o mesmo risco.
- Não vou escrever sua biografia, Cincinato. Quero informações sobre como você sobreviveu e com quem conviveu. E não vou citar o seu nome real. Trata-se de uma narrativa de ficção.
- Não... Pode citar o meu nome. Não me incomodo!


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CONTOS"Índice das publicações sobre "CONTOS"
20/12/2022 - 06h19 Aquelas palavras escritas
20/10/2022 - 06h07 Perfil
30/06/2022 - 06h40 Ai eu choro
13/06/2022 - 06h32 Páginas de ontem
31/05/2022 - 06h38 É o bicho!
24/05/2022 - 06h15 Tocaia
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.