| Arquivo Evely Reyes | | | | Eu e Dogão. |
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A questão não é gostar mais ou menos de alguém. Na verdade temos mais afinidades com uns que com outros, sejam eles humanos ou não humanos. Algumas peculiaridades nos atraem e outras características nos dão repulsa. Com as pessoas é desse jeito e em relação aos bichos também. Para ser sincera sempre fui apaixonada pelos animais e só não fiz veterinária porque acreditava não ter coragem de vê-los sofrendo ou sangrando. Todos os bichos que tive sempre foram cuidados com muito carinho e da melhor forma que eu podia, não importando se eram cabritos, patos, galinhas, gansos, coelhos, cães, gatos ou até as duas jumentas que mantive tão logo resgatadas da beira da rodovia. Nunca me alimentei de nenhum deles, pois os respeitava como seres sencientes, com sentimentos e vontade de viver. Eu os achava lindos, mesmo que alguém dissesse que um era desengonçado, que o outro tinha algum defeito ou que era feio. Ficavam bem alegres quando eu chegava da rua: sentiam saudade, pois tinham amor nos seus respectivos corações e manifestavam o agradecimento que experimentavam. Essa recepção não tem preço e quem não gosta de animais, nunca vai vivenciar um contentamento desses. No mês de novembro de 2012, aqui em Fortaleza, encontrei um cachorro que estava abandonado na Praia do Futuro e que infelizmente partiu dessa vida no dia 15 de julho de 2013. No pequeno período em que convivemos, criamos um vínculo afetivo grande, porque ele era uma criatura extremamente doce e meiga. Com mais de 50 kg, para muitos tinha uma presença assustadora com sua pelagem preta e todo o seu tamanho, mas era completamente manso. Minha amiga Fátima brincava dizendo que ele era como um “obstáculo”, pois se colocava a nossa frente sempre a exigir afagos, que no seu entender deveriam ser ininterruptos e intermináveis. Ninguém resistia ao seu charme e todos que em casa vinham, acabavam se apaixonando pelo Dogão, com seu jeito dengoso de ser. Era atento, muito inteligente para tudo e sabia a hora que eu acordava para poder me chamar, com seu latido rouco e grave. Em outras ocasiões, se não tivesse condições de estar mais próximo, ficava me fitando ao longe para acompanhar meus movimentos. No instante em que passava por ele, punha-se à frente, feito um “obstáculo” e logo percebia quando eu tinha a intenção de suspender o carinho e imediatamente me segurava com uma de suas patas dianteiras. Adorava bolinhas e a qualquer instante se encontrava disposto a correr e brincar com elas, mesmo que para sua tristeza tivesse que ser sozinho. Na manhã em que o conheci na Praia do Futuro, ele estava correndo em busca de um graveto que era arremessado ora por um rapaz, ora por algumas crianças. Entrava e saía do mar com muita desenvoltura e transmitia a impressão de que estava ligado àquelas pessoas há muitos anos. Que nada! Logo após que lhe dei atenção e o levei para o quiosque onde eu estava com outros amigos, passou a agir como se eu fosse sua tutora desde o início de seus dias. Ali mesmo ganhou água e comida e parou de comer casca de coco seco e areia de praia. Percebi que sua idade era avançada, pois seus dentes tinham as pontas desgastadas e seu focinho já era todo branco. Mais tarde, embora estivesse infestado de carrapatos foi convidado a subir no banco de trás do carro e tão logo chegamos a casa, foram tomadas todas as providências necessárias ao seu bem estar. Dia seguinte, sem que eu imaginasse, ele teve problemas para levantar, pois já estava contaminado pela erliquiose. Descobri que essa doença infecciosa causada por bactérias do gênero Ehrlichia nunca mais abandona o animal e sempre reaparece conforme cai sua imunidade. Nos oito meses em que o Dogão brindou a todos com sua presença serena, ele teve duas recaídas que o deixaram com dificuldades para se locomover. A cerâmica lisa e escorregadia de parte do quintal aqui de casa só veio a atrapalhar meu querido amigo de quatro patas, mas o veterinário disse que ele também estava com artrose, em virtude dos seus mais de dez anos de vida e que seu coração já estava fraco, além de um pequeno tumor existente no peito. Todas essas coisas somadas se tornavam um grande problema para ele. Nos últimos dias parou de se alimentar e teve até que tomar algumas injeções para que reagisse mais prontamente. A medicação não fez efeito e após o segundo dia ele não mais conseguiu se levantar. Apavorada, pedi ao veterinário que viesse buscá-lo a fim de que fosse internado e submetido a um tratamento mais intensivo. Recebi o retorno de que ele só poderia vir ao final da tarde, porque estava atendendo um caso urgente. Fiquei ao lado do meu querido Dogão transmitindo todo o carinho que podia, com muitos afagos e palavras de ânimo. Num determinado momento, senti que algo estranho estava acontecendo com ele, como se sentisse alucinações. Passei a fazer minhas preces e pedi ao protetor dos animais que o resguardasse, não o deixando sofrer. Francisco de Assis, esse indivíduo iluminado, foi um dos que mais se dedicou à caridade e à compaixão pelos inúmeros seres vivos deste planeta e por quem eu nutro imensa admiração. Como espírita e estudiosa da Doutrina respeito todas as crenças e considero importantes as pessoas que acrescentam algo de bom nas vidas de seus próximos e consequentemente delas próprias, pois é a forma que se pode transformar o mundo para melhor. Então, ninguém mais apropriado que Francisco de Assis para me ajudar. Parece que ele atendeu as minhas orações, pois alguns minutos depois o Dogão se foi, após um tremor repentino do corpo e das pernas. Por ter aparecido com idade avançada e ser tão dócil, ele foi o cão mais surpreendente que me surgiu. Deixou muita saudade e me mostrou como é fácil tornar-se querido em tão pouco tempo. Cada vez que olho para os cantos em que ele ficava, tenho a lembrança gostosa daquele cachorro grande e preto a me olhar, transbordando delicadeza e amor incondicional. Lindo, educado, carinhoso e amigo. Abençoada a hora em que me dirigi à Praia do Futuro naquela manhã de novembro...
Nota do Editor: Evely Reyes Prado, reyesevely@yahoo.com.br, paulistana, formada em Direito pela PUC-SP, morou em Ubatuba por vinte anos, onde aposentou-se pelo Tribunal de Justiça - SP e foi integrante da APAUBA - Associação Protetora dos Animais de Ubatuba. É autora de contos em Antologias diversas, e dos livros “Tudo Tem Seu Tempo Certo” e “Do Um ao Treze”, encontrados através do site www.scortecci.com.br.
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