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Contos
03/08/2013 - 15h02
Clandestino
Marco Albertim
 

Com o frio da manhã na medula, pouco se importou que a lembrança do que deixara para trás desse conta de prejuízo na alma. A suspeita de que a demanda de afeto, inda que surda, logo seria um cavouco nas entranhas, juntou-se ao balanço de perdas e danos.

A estação de estrada-de-ferro, na cerração cinzenta da manhã, absorvia com sofreguidão lenta a vigilância sonolenta do guarda ferroviário, os olhos mortos do camponês de chapéu de feltro e capa do mesmo tecido, o sono mudo do menino com a cabeça no colo da mãe, deitado no banco de madeira; ambos envoltos numa chita mouriscada com dobras de cima a baixo, tão ao gosto dos vãos no respaldo e no assento do banco. Absorvia o frio na medula do operário Granadino dos Montes, seus urdumes, o balanço de perdas no juízo sereno; absorvia sem incômodo.

O trem parou. Antes que do cano de escape fosse expelida a derradeira golfada de fumaça na estação, uma vintena de homens e mulheres ocupara a plataforma de cimento estropiado na margem da ferrovia. O acesso aos vagões se deu sem atropelos, sob a espreita, àquela altura, apurada do guarda com calça, paletó e quepe cor cinza. O camponês, o menino e a mãe, despertos pelo motor chiante do trem, foram os primeiros a subir no primeiro vagão do comboio. Granadino dos Montes, atrás deles, seguiu-lhes do mesmo modo de andar sem cobiça dos pobres.

Os óculos, ele os pusera no rosto macilento com vincos de quem se habituara a pensar em problemas, revolvendo-os da superfície às entranhas; óculos com aros de metal reluzente comprimindo duas lentes finas, transparentes, próprias de quem as usa para leituras a pouca distância. O guarda, também com óculos semelhantes, mas com rosto corado feito uma romã; a saliência das bochechas, logo abaixo dos olhos, compunha-se feito anteparos à armação dos óculos. Ele espreitou pelas lentes mais grossas que as de Granadino dos Montes, os óculos do operário. As roupas de Granadino, de brim ordinário como a dos outros passageiros, acentuavam-lhe o talhe de operário; já os óculos...

Granadino dos Montes sentou-se ao lado da janela. A observação do casario pobre, o desengonço das telhas, as ruas sem calçamento da Vila do Vintém ao lado da ferrovia, sucederia sem lesão o sorvo terapêutico da estação do trem. Teria que olhar sem dar conta de incômodo nos olhos. A armação dos óculos, retangulares, por certo teria o efeito de um objeto estranho em seu rosto redondo. Acomodara-os no rosto, com a preocupação de ter nos olhos a mansidão comum a quem se acostumara a ver sem sinais de espanto, de surpresa.
- Não sei quando vou devolver os óculos a você, porque não sei quando vou voltar. Também não sei para onde vou. Só quando me derem a passagem saberei para onde estou indo. Por segurança...

A peroração, a última a um parente próximo, estendera-a mais do que o preciso, mas convencera-se de que se referir a um futuro vago, denso, era o discurso mais adequado à opção de vida a que fora forçado. O parente quisera dar-lhe algum dinheiro, recusara-o para infundir confiança de que sua volta, inda que incerta, seria certa.

De seu lado, na mesma poltrona, sentou-se o camponês de capote de feltro. Em sua frente, a mulher e o filho com vestimentas de chita. O camponês tinha uma mala quadrada, de papelão revestido de plástico. A mulher, uma sacola cheia de roupas nos fundos, fechada na abertura por um laço num cordão grosso. Granadino dos Montes trouxera o macacão de trabalho na sacola com alças em arco; sacola de tamanho médio, com duas camisas e uma calça a mais, cuecas, uma toalha, escova e pasta de dentes.

No corredor, em pé, o guarda ferroviário, conferindo o bilhete de cada passageiro, deteve-se em frente ao acesso às poltronas de Granadino, da mulher e do camponês. Sopesou nos dedos sanguíneos os bilhetes do camponês, da mulher e da criança. O do operário, olhou-o para cumprir o rito, sem perder de vista os aros brilhosos dos óculos no rosto de Granadino dos Montes.
- Há muito tempo que usa óculos?

Granadino, enquanto o guarda segurava o bilhete, voltara a se distrair com a paisagem da janela. A Vila do Vintém ficara para trás. O canavial, feito um tapete ondulante no sopro do vento, sussurrava permissivo à inquirição no juízo do guarda.
- Sim.

A curta resposta do operário fez crescer as suspeitas do guarda ferroviário. Na estação de trem de Maceió, ele foi intimado a mostrar os documentos a homens sem farda, sob o olhar pomposo de triunfo do guarda.

Quarenta anos depois, uma multidão se comprime na Praça do Derby. Granadino dos Montes tem no rosto óculos com armação de acetato. Chove; ele não sente os pingos nos ombros arqueados. Olha para a grama da mesma cor do canavial que respondera com sussurros às perguntas do guarda ferroviário.
- Granadino! Segure essa bandeira! Vai começar a marcha.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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