Uma dúzia de mesas se espalha sob a marquise. O dono do restaurante é gordo, tem a obesidade própria de quem trata o corpo com desleixo. A mulher, sua esposa, tem a mesma idade: quarenta e cinco anos e vincos precoces de velhice na palidez do rosto. A filha, com pouco mais de vinte anos, guarda no rosto a suavidade própria da idade. A barriga é intumescida; ela a exibe como um troféu legítimo depois do casamento às pressas. O filho de cinco anos corre entre as mesas; seu bulício a ninguém incomoda; é a trilha sonora de que carece a pachorra do cenário. A família se distrai com a inquietude do menino. O freguês que está do lado mantém-se impassível. Ele é baixo, tem os cabelos escorridos, negros, feito uma moldura na amarelidão do rosto vincado de anos. Em cada sorvo que faz no cigarro, há a zombaria de quem se persuade de que o câncer é doença de pobre; não de quem acionou o gatilho de uma metralhadora, deixando uma dezena de suados camponeses estendidos na piçarra entre o canavial. A cerveja, para ele, há muito perdera o gosto de fel próprio do temor de sofrer uma vindita. Não por disparo de arma, mas de um golpe de peixeira na jugular, fazendo escorrer seu sangue também escuro, com o mesmo cheiro que ele sorvera com repulsa, na piçarra juncada de mortos. A cerveja, para ele, é um brinde à anistia que também o beneficia. Ele não ri. Chamam-no Geraldo; o nome é apropriado porque tem semelhança com geraldino, frequentador da geral. Geraldo tem severidade no rosto, inda que dando conta do passado num canto ermo de um bar. A parede a sua frente é musgosa; umas parasitas ali cresceram, certas de que enfeitariam as imagens cinzentas da memória de fregueses como Geraldo. O vento que sopra da beira da praia não faz bem à saúde; é frio e murmura tristeza. O dono do restaurante quer reter a escassa freguesia. Levanta-se e liga a televisão sobre a hera na parede. A novela do começo da noite ainda se arrasta. Geraldo não tem interesse em absorver a gíria de cada personagem; não cabe na sua linguagem muda, seca. Saíra de casa como de costume àquela hora, para não ter que conversar consigo mesmo, com o que fora nos dias que se seguiram ao 1º de abril de l964. Do lado de sua cama larga, na mesa de cabeceira, há um retrato do moço Geraldo sentado no banco da frente de um Jipe; nos dois bancos de trás, quatro policiais à paisana; todos, como ele, com metralhadora no colo. Não há capota no Jipe. Tudo é permitido a céu aberto. O retrato em preto e branco se conserva na moldura cinzenta feito uma laje tumular; adquiriu tons de sépia no negrume do rosto de cada um; o negrume, diga-se, emprestando loquacidade aos propósitos daqueles homens. O retrato é um galardão. Ele o mostrara às poucas visitas, aos congêneres, a bebedores de copo cheio e cidadania vazia. - Geraldo. Ainda tem aquele retrato na perseguição aos comunistas? A pergunta teve o efeito de um sopapo. Tirou-o do sono com olhos abertos e removeu a teia de aranha que supunha já cobrindo o cinza-marrom do retrato. - Tenho. Andrade não foi vítima de perseguições. O 1º de abril pegara-o de calças curtas, um maço de velas que fora comprar a mando da avó, na mercearia em frente à Cadeia Pública de Goiana. Esquecera as velas no bolso da calça, para urdir-se no sofrimento dos camponeses empurrados pela polícia, para dentro das enxovias. Cresceu pensando na pele escura, curtida, do rosto de cada uma. Com o tempo, sentado ao lado do avô, na mesa onde a família se livrava do jejum, começou a entender. - É a perseguição aos camponeses do sindicato - dizia-lhe mestre Lira, alfaiate de pele curtida e ideologia rubra. Num instante, Geraldo levantou-se, sentou-se ao volante do Fiat e trouxe o retrato. Mostrou-o a Andrade certo de que a mocidade do interlocutor absorveria a maturidade no rosto dos ocupantes do Jipe. O noticiário da televisão mostrou a polícia na Avenida Paulista, reprimindo estudantes. A fumaça das bombas de gás lacrimogêneo avivou a memória de Geraldo. O dono do restaurante, com as bochechas vermelhas, ordenou silêncio ao filho barulhento; teve a ajuda servil da mulher. - Já jogou bombas em manifestantes, Geraldo? - quis saber Andrade, curioso para saber como se movem as entranhas do pensamento de um torturador. - Não. Metralhei camponeses porque estavam todos armados com enxadas e estrovengas. Vinham todos em nossa direção. Já pendurei muitos no pau de arara para dizer onde estavam os outros. Com o fim do noticiário, a televisão foi desligada. O retrato em preto e branco de Geraldo substituiu as cores da Globo. O círculo fechou-se em torno dele, de suas narrativas de quando fora torturador. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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