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Contos
15/06/2013 - 15h06
Mestre Lira
Marco Albertim
 

O corpo magro de mestre Lira, feito uma mão encaçapada numa luva, combinou com perfeição no terraço sem móveis da casa. Sentara-se na única cadeira de balanço, e tivera o cuidado de tirar a camisa de mangas compridas, um linho áspero com feltros soltos; ele mesmo, com a tesoura de navalha comprida, cortara o pano debruçado na mesa à altura de sua cintura. Também ali, confeccionara a bandeira vermelha dos comunistas, em seguida hasteando-a na parede de frente da alfaiataria, acima de uma das três portas da casa de alvenaria barroca; para comemorar a volta do partido comunista à legalidade.

Agora, de costas para a rua, com a magreza exposta, há uma estranha familiaridade entre as costelas das vértebras e as três colunas finas sustentando o telhado do terraço. Mestre Lira não gostava de carnaval; fora para a casa na praia, para não ter que ouvir a estridência de pistons, os gritos de uma multidão ainda avessa, conforme ele, às notas da Marselhesa ou à pungente fervura da Internacional.

Há em seus olhos verdes uma luz cúmplice do tom marrom da testa, das bochechas trianguladas, ancoradas no queixo pontiagudo; um rosto quase imberbe, de tanto passar a navalha. Ele sorri sem qualquer razão aparente, visto que a parede sem quadros, com uma porta e duas janelas, parece recuar da incidência de luz àquela hora do dia. Sorri com os olhos abertos, fixos em algum nicho da memória.

Há vinte anos, acordara mais cedo do que o costume. Era um sábado. Junto com a primeira luz do dia, ouviu-se no beco ao lado o ruído de porcos, cabritos puxados pela corda por feirantes. A feira, naquele dia, não se fez com tropelias, mas com certo arrebatamento festivo. E mestre Lira, já na véspera, convidara o padre Andrei para, junto com ele, dar-se ao desjejum preparado por sua mulher; um cuscuz gorduroso, embebido em requeijão derretido. O café quente, fumacento, daria conta das bolachas untadas na manteiga.
- Traga também seu ajudante de missa. Com o breviário e um potinho de água benta.
- Converteu-se? - quis saber o padre.

Padre Andrei foi último a terminar o desfastio. Sequer se incomodou com o silêncio do anfitrião, posto que a batina de cor cremosa escondia o festim do ventre sentindo a gordura do cuscuz ali entranhada. O ajudante, tão magro quanto mestre Lira, comera com escasso apetite; o amarelidão no rosto dava conta de um impaludismo iminente. Mestre Lira, inda que magro, soltava dos poros a quentura da pele marrom. A mulher do alfaiate pouco se incomodou com o fastio do ajudante de missa; sentira-se satisfeita com o apetite incomum de padre Andrei, indício persuasivo de louvor a sua comida.
- Padre Andrei. Você não é dialético!

O padre ouviu a sentença. Não quis ter o trabalho de olhar o rosto de mestre Lira; para não dar tratos a controvérsias, para não ter que virar o pescoço grosso, tão bem acomodado no cachaço largo. Mas a mulher de mestre Lira mirou-o na expectativa de uma resposta, e o padre Andrei, com o estômago revoluteando gratidões, deu conta de um adjetivo monocórdico, inda que carregado de significados.
- Sou gnóstico...
- Seu pensamento é tão enfatuado quanto os paletós que os senhores de engenho me encomendam na alfaiataria. Por falar nisso, domingo você vai almoçar na casa da sinhazinha do engenho Bujari?
- Eu atendo os chamados da sinhazinha. Ela está quase morrendo.
- Está negociando a vida com os guisados que oferece ao clero da cidade.

Os dois se levantaram rindo, certos de que não chegariam a um acordo e de que nunca iriam às vias da ruptura. O ajudante seguiu-os no passo lento de padre Andrei. No caminho, Aníbal, o farmacêutico com óculos de lentes grossas, incorporou-se à comitiva. Afim do mestre Lira, logo inquiriu:
- O capitalismo ainda tem cinco anos de vida?
- Não sei; sei que nós vamos celebrar agora a marcha de sua decadência - advertiu o alfaiate.

Na rua do Trapiche, a feira na rua estrugia o barulho dos mascates.
Mestre Lira, abrindo a porta do meio, trouxe de cima da mesa de costura a bandeira vermelha com uma foice e um martelo cruzados. Subiu numa cadeira e içou-a sem dificuldades no arremedo de mastro no limiar da porta; sob os olhos atônitos de padre Andrei e a brancura morta nos do ajudante de missa.
- Padre Andrei! Jogue água benta e abençoe o vermelho do sangue do proletariado na bandeira do Partido.
Padre Andrei saiu dali correndo, ante a curiosidade dos feirantes. Atropelou-se num garajau de madeira cheio de galinhas.

Na cadeira de balanço, mestre Lira sorri. Os olhos estão mais que fixos na memória, estão frios.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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