Caboré morreu numa quinta-feira. Um único tiro fora disparado do rifle papo-amarelo. O estrondo se fez ouvir no canavial já maduro para a colheita. De cima do cavalo, o vigia apontara para o piquete. Quinze homens no piquete, convencendo outros cortadores de cana a não continuar o corte; a assembleia decidira na noite anterior, no sindicato. Os homens que ainda trabalhavam tinham vindo do distrito de Pasmado, na carroceria do caminhão da usina. O mesmo caminhão os conduzira de volta para casa, por ordem do administrador, logo que terminaram a lida; assim, não tiveram como participar da votação que decidira pela greve. O corpo de Caboré ficou estendido na piçarra fria, posto que o dia não se anunciara ainda com o sol pleno. Os olhos não se fecharam; a bolota de cada pupila, fixas, no rumo das sobrancelhas. A boca semiaberta, num ricto onde se distinguia a palavra que fora interrompida a meio caminho de sua sonoridade completa. Tinha o jeito, Caboré, de falar conforme o sopro do vento; do vento brando da Zona da Mata, doce porque ainda carregando o frescor de um resto de mata verde na beira de um córrego. Juntando-se à voz sem ruído de Caboré, feito um veludo na pele, o vento acumpliciara-se ao conteúdo de suas palavras. Isso, por certo, contrariara a lógica patronal do vigia no cavalo. O homem disparou na ponta da curva do caminho piçarrento, disparou sem mirar alguém em particular, certo de que a vermelhidão do sangue, misturada à terra seca, daria conta do vivo bodum da minhoca-brava sob a raiz de cada cana; a minhoca voraz, não estranha aos vermes comedores de defuntos. O cavalo com o vigia no lombo, seguiu para a usina; para a estrebaria nos fundos da moenda da cana, junto a outros cavalos com outros vigias conversando numa roda, cada um com um palito de galho de bambu entre os dentes. Os piqueteiros, inda que o pardo-escuro do tempo não lhes comprimisse as frontes, renderam-se à náusea da morte anunciada pelo disparo. Os cortadores de Pasmado, os mesmos que espreitaram a paciência na voz de Caboré, recolheram a foice; cada um enfiando o cabo de madeira, com a navalha para cima, nas amarras da cintura, entre o cinturão de couro sem verniz e as rugas do tecido grosso da calça. O piquete fez-se grande com a adesão dos pasmadenses. - Fala, Caboré, diz alguma coisa... Tu não é de se entregar à morte! Caboré gemeu sem mexer com os olhos; o estertor fez o queixo esticar-se para baixo, para um de seus lados; com os olhos para cima, os cabelos lisos, no desalinho contrário ao penteado de costume, o rosto pareceu dar razão à estreiteza tortuosa da terra entre um lado e outro do canavial, aos sulcos abertos pelas patas dos burros de carga. Caboré soltou o gemido, o derradeiro; o sangue na boca escorreu grosso, com pressa em coagular-se. - É o pieiro da morte! A explicação, à moda de uma senha já esperada, fez acender a luz nada bacenta do sol. Os tizius, arribados da restinga ali perto, há muito pousavam às palhas verdes em volta dos pendões da cana; os cantos seguidos pelos saltos em viés, não foram vistos pela curiosidade telúrica dos camponeses. Desceram para o chão úmido da terra, arrancando com o bico os talos da grama rala, regalando-se com as raízes sob a terra escura. O corpo com o rosto exposto à aurora luzente, carregada de brumas invisíveis, deixou-se encolher com o arredamento dos homens. Eles sentaram-se nos ressaltos paralelos, em cada lado da plantação. Por trás de cada um, o canavial ainda renhido, à espera dos cortes. Ouviam-se os piados buliçosos dos tizius, os gemidos de um sapo com o dorso espinhento sendo espremido entre os dentes e as gengivas babentas de uma jararaca. Nada lhes aguçou os sentidos. O piquete fora engrossado, mas a rigidez nos olhos de Caboré cobriu os olhos de cada um com o torpor igual à calda venenosa que a usina espalha no rio maior, o mesmo que irriga todo o massapê sob as canas. O Jipe do sindicato, sem o capuz de lona, chegou. O corpo de Caboré, estendido entre os bancos de trás, teve a cabeça levantada entre as pernas do camponês em cujos ouvidos ainda zunia o pieiro da morte. Seguiu em pouca velocidade, o Jipe. A maioria do cortejo, quase em andrajos, caminhou sem queixas pelo chão desigual rumo a Goiana. Na rua principal da cidade, em frente à prefeitura, os funcionários, mudos, debruçaram-se no parapeito de cada janela. O prefeito não foi avisado, mas advertiu-se com a súbita interrupção do trabalho. Abriu caminho rumo à janela principal do andar de cima; e acendeu um charuto tirado do bolso do paletó de linho. O Jipe, sem que o motorista desse conta do pé no acelerador, roncou sem ruído na frente do prédio. O mesmo camponês que advertira os outros do pieiro da morte, tinha numa das mãos uma bandeira vermelha presa ao cabo de uma enxada. O lume da manhã avermelhou o desenho de uma foice e um martelo no meio da bandeira. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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