Evely Reyes | |
Ela estava trabalhando em seu escritório, por volta do meio dia de um sábado qualquer, em que os muitos turistas se misturavam aos moradores da cidade. De repente o som de uma pancada seca, seguida de um grito de dor ecoou em meio ao barulho das pessoas e do vai e vem dos veículos. Imediatamente ela se dirigiu à frente da sua loja de paisagismo e pode constatar um aglomerado de homens e mulheres, posicionados para observar um pequeno cão todo ensangüentado que se contorcia. Como é comum nestas situações todos olhavam a vítima, mas ninguém teve qualquer iniciativa, até que ela se aproximou e resolveu tomar uma atitude para minimizar o sofrimento daquele cachorro. Com a língua cortada, um olho quase saltado de sua órbita ocular e dois afundamentos no crânio o assustado animal não teve uma reação amigável, pois estava tomado de dor e pavor e impossibilitava o resgate pela protetora que o queria recolher. O local defronte à mencionada loja de paisagismo, na cidade de Ubatuba, situa-se numa avenida conhecida e movimentada que atravessa o bairro do Perequê-Açu, onde a velocidade permitida é de 40 km/h, em razão do grande fluxo de pedestres e ciclistas. Diversos obstáculos em forma de lombada também foram colocados ao longo desse logradouro, a fim de evitar acidentes. Mas, a falta de respeito manifestada através da alta velocidade empreendida pelo motorista daquela “Ecosport” que ninguém teve oportunidade de anotar as placas, ocasionou o atropelamento deste animal de rua, ocorrido exatamente sobre o obstáculo, em que se deve trafegar de forma mais lenta, pois seres humanos e não humanos ali têm o costume de fazer a travessia de um lado para o outro, como se uma faixa de pedestres houvesse. Minha amiga Fulvia deixou suas atividades e imediatamente o levou ao veterinário, tão logo conseguiu pegá-lo ao jogar uma tolha sobre seu corpo. Após o atendimento e providências necessárias ele foi batizado com o nome de Kauê e por três meses foi acolhido na casa da protetora Mariangela, que lhe exterminou os carrapatos encontrados nas orelhas bem como as larvas de mosca, popularmente conhecidas como bicheira. Passado esse período, esse simpático e meigo sobrevivente foi adotado pela Fulvia e têm a felicidade de conviver com mais dois amigos peludos, Paloma e Nikos. Apesar de seus aproximados 18 anos de vida, sua surdez, a catarata que o impede de enxergar direito e o olfato comprometido é flagrante sua gratidão diante da qualidade de vida que adquiriu em seu novo lar. Naquele fatídico sábado a história deste ser não humano começou a tomar outro rumo e deixou de ser marcada pelo descaso e indiferença dos seres humanos. Há oito meses, Kauê passou a receber o respeito que todo ser vivo merece, pois apesar de limitada sua inteligência, como animal que é ela existe e embora para alguns não pareça, também é senciente e tem consciência do que é dor, pavor, medo, saudade e amor. Não é uma simples máquina que pode ser descartada diante da falta de interesse de seu usuário. O ser humano pode praticar crueldades e atrocidades inimagináveis, mas é capacitado para manifestar a gentileza e benevolência infinitas que seu coração pode abarcar. Felizes das pessoas que compreendem a magia que nos conecta a todos os componentes da Mãe Natureza, da qual também somos elementos.
Nota do Editor: Evely Reyes Prado, reyesevely@yahoo.com.br, paulistana, formada em Direito pela PUC-SP, morou em Ubatuba por vinte anos, onde aposentou-se pelo Tribunal de Justiça - SP e foi integrante da APAUBA - Associação Protetora dos Animais de Ubatuba. É autora de contos em Antologias diversas, e dos livros “Tudo Tem Seu Tempo Certo” e “Do Um ao Treze”, encontrados através do site www.scortecci.com.br.
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