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Contos
25/05/2013 - 15h00
Eulálio e Gregório
Marco Albertim
 

A pouca luz no fim da tarde, pouco ou nada distinguia a cor de cada um dos Fords estacionados no Parque Amorim. Fords ovalados, com lataria grossa, resistente à corrosão. Os motoristas, do lado de fora dos automóveis, tinham em conta o matagal de um lado e de outro do canal, nas margens viscosas do mangue.

Ali, sem que a polícia se dispusesse a uma incursão ou outra entre os angicos, escondiam-se ladrões que, espreitando entre os galhos, esperavam passageiros usando calça e paletó de uma cor só, de linho; visto que sob o linho engomado há sempre o couro de uma carteira acolchoado com notas de dinheiro.

A noite se deu tão preguiçosa quanto o trânsito ralo. E toda a conversa entre os motoristas distinguiu Pelópidas Silveira, candidato a prefeito do Recife.
- O que faz medo é os comunistas do lado dele. É gente fria, sem coração, disposta a fritar o coração de um menino para mostrar coragem de luta.
- Acredita nisso, Eulálio? Eu moro no Alto do Pascoal. Tem domingo que eu bebo cerveja com Miguelito, mecânico de carro. Ele é comunista. O único coração que ele come é o de galinha. Minha mulher frita e ele come com a cerveja.
- E comunista bebe!?
- Bebe, se embriaga e também corre o risco de levar corno da mulher.
- Tem comunista pirobo? – quis saber Eulálio.
- Nunca ouvi falar. Gregório Bezerra, quando ficou preso em Fernando de Noronha, diz que no pavilhão vizinho ao que ele e os comunistas ficavam, havia outro, o dos galinhas-verdes. Entre os galinhas-verdes tinha muito pederasta.
O telefone no poste tocou; o ruído, quase insonoro noutra hora, rompeu o silêncio na via deserta.

Eulálio, cujo Ford era o primeiro da fila de automóveis, correu para atender. De todos ali, fora o único que se mostrara receoso de ir à cabine de votação. Não queria votar nos comunistas, nem em outro candidato com o apoio deles, e tinha medo que sua escolha contrária chegasse ao conhecimento dos comunistas. Mas Pelópidas... ora... Pelópidas tinha na redondez do rosto, nos olhos serenos, a bondade dos homens; a roupa branca, paletó, camisa e calça sempre asseados, passados no ferro, sem trama nas dobras feito quem esconde a mentira na meia-voz.
- Alô...
- Um táxi, por favor. Rua do Hospício.
- O número da casa?
- É no comitê de doutor Pelópidas!

Desligou meio incrédulo, inda que julgando-se desfeiteado pela sorte de o acaso ter escolhido ele, entre uma dúzia, para privar da companhia de um comunista; um comunista por certo voraz, que não pagaria o preço da corrida, incitando-o a se portar com docilidade, em benefício da revolução popular.

O táxi estacionou sem dificuldade. Era domingo. Os casais, com os filhos nos braços, segurando-os no punho, não tinham em conta que nos corredores daquela casa, se tramava a ocupação da Prefeitura, dos bairros, por homens sem a cruz no pescoço, mas um martelo cruzando uma foice de gume afiado.

Esperando na porta, recebeu Eulálio um homem alto, costados largos; os traços do rosto oscilando entre o sarará e o vermelho tostado; os cabelos finos, rareados nos lados, nunca se deixando estofar, ainda que dando mostras de que crescera na quentura sobre a terra seca do sertão.
- Espere só um pouco.

Não demorou. O homem entrou no táxi. Não apertou a mão de Eulálio, tocou levemente seu ombro, informando o destino.
- Qual é sua graça – quis saber Eulálio.
- Gregório.
- Bezerra!?
- Um camarada às suas ordens.

No Alto do Pascoal, os dois desceram do táxi. Gregório convencera Eulálio de que deveria assistir ao comício da campanha de Pelópidas Silveira. Em frente ao palanque montado, crianças seminuas, curiosas, olharam para os recém-chegados.
- Veja esses meninos. Ainda não comeram. É por isso que eu sou comunista...

Para não acentuar o pasmo de Eulálio, acrescentou:
- Vamos voltar com você, no seu táxi.

Gregório Bezerra discursou. O último a falar foi Davi Capistrano, baixo, troncudo e voz cava, metálica.

Dali em diante, Eulálio estacionou o Ford em frente ao comitê do candidato. Com a eleição de Pelópidas, entregou o Ford ao proprietário de quem o arrendara. A convite de Gregório Bezerra, tornou-se motorista do jipe do Movimento de Cultura Popular.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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