A calcinha vermelha que ela deixa ver sob a curta saia, não chama a atenção de quem olha; há muito deixou de ser o invólucro atrativo do sexo também carente de importância no corpo. A saia é preta; bem que podia combinar com a negritude da pele, mas acentua, com os traços cinzas de sujeira, os mesmos riscos nas pernas e coxas ainda roliças. A blusa é vermelha, com um nó nas extremidades da frente, na altura do umbigo. Nenhum torcedor do Sport prodigaliza as cores da roupa de Teresa Coreana. Ela tem vinte e seis anos e um brilho morto nos olhos; não de restos de seiva, mas do crack sorvido na noite brumosa do Largo da Encruzilhada. Não está só no mundo. Acomoda-se, junto com amigos da mesma fortuna, num arremedo de colchão que fora amarelo e escurecera no contato com o chão de cimento em volta dos bancos em círculo da praça. De seu lado, o sarará de sua idade protege o corpo com uma bermuda nada esportiva, visto que é uma minúcia sob a camisa de chita, sem cor, bem à moda dos miseráveis; Diocir tem nos olhos a mesma amorfia da amiga. São nove horas do dia. Ele ainda não removeu as remelas das pálpebras que insistem em se manter fechadas. Manter os olhos fechados é o modo de não se crer deserdado, aparentar indiferença a quem não os julga insofridos. Já Amélia Tronca tem os peitos cambados. Não se incomoda que a vejam com o bico da mama de fora, feito um cabide pontudo na boca pionga do filho de três anos. O crioulinho de pernas mirradas senta-se numa das coxas da mãe; tira proveito do regaço que a sorte ainda não tirou de si. Tem no corpo uma única peça que lhe serve de camisa, de bermuda, visto que desce dos ombros ao meio das canelinhas; uma camiseta esquecida por um cliente no ateliê de Rosa Temprano, costureira num dos boxes do Mercado da Encruzilhada. A modista lida com roupas de cor variada. Julgara, em seu juízo de camareira, que o tom róseo da vestimenta emprestaria outra coreografia ao cenário cinzento sob a única mangueira na praça. As mangas, diga-se, não têm o direito de se mostrar maduras; a fome sob suas folhas sem viço devora-as antes que a natureza cumpra com seu ofício. Já estás prenha!? – quis saber a costureira assim vira o intumescimento no ventre de Amélia Tronca. Então com dezoito anos a primeira inquilina do Largo. Como a curiosidade sumira depois de três anos, Amélia Tronca tirou do juízo os urdumes de ver Rosa Temprano, madrinha de Rafael. O pai fora levado pela polícia depois de flagrado num furto a um passageiro de ônibus. Ela foi ao Distrito de Polícia, quis saber em que presídio o trancafiaram. Turino saiu daqui! Ninguém sabe onde ele está, ouviu dos agentes. Turino já é carne podre, disse-lhe Diocir, sem medo de o coração de Amélia Tronca afundar na dor, porquanto a dor nunca lhes recusara encosto. Às nove e meia Teresa Coreana e Diocir estão sentados num dos bancos, sentados com a convicção do direito de posse. Ela tem na boca uma chupeta, a mesma de Rafael. O moleque não se aborrece porque se entretém na mama da mãe. Tampouco Amélia Tronca, acostumada ao uso da vasilha de plástico com alça de arame. Do recinto, ali, ao sanitário do mercado, é mais que a busca da água, é a chance de distinguir alguma prenda no chão ou uns restos de cuscuz que Manoel, o português do boteco, lhes dá para que não o amolem com peditórios chorosos. Cuscuz umedecido, brilhoso com o que sobrara do óleo que dera gosto ao guisado. Teresa Coreana e Diocir, com a troca de um arreganho de sorriso, retorcem-se no pescoço. Ela ainda tem num canto da boca a chupeta de Rafael. Convence-se de que o enfeite de menino esconde o cabritismo do sexo. Ele não se incomoda. Da língua de Coreana desprende-se um chorume baboso, que servirá para entreter o céu da boca ainda sorvendo o gosto da manga verde. Há muito estão ali, sem reparos nem aros para consertar-lhes as pernas tortas. Os dois saem do banco, juntam as espumas que chamam de camas. Sem tirar a roupa, cobrem-se num lençol de trapos emendados; verde, preto, amarelo, vermelho, azul. A praça é do povo... e dos miseráveis. Deitados, Teresa Coreana sobe com uma das mãos a bainha da saia curta; não tira a calcinha, abaixa a frente, para o sexo ensebado de Diocir dar-se conta do título de posse sem o constrangimento de papel passado. A posse não se dá feito um cavalo em cima da égua, inda que os dois se traiam no impulso feito dois canibais; a posse se dá em decúbito lateral, sem gemidos, os olhos viajando com a ajuda do crack consumido à noite. - Já estão se esfregando aí, não é...! – É Rosa Temprano, cronista dos costumes. Atravessara o Largo para ir à padaria. Amélia Tronca ri, por certo para manter vivos os resíduos de solidariedade da modista. Teresa Coreana trocou a calcinha por outra da mesma cor, sem se livrar do lençol colorido. Em seguida, lavou a usada no balde ainda com água. Nos troncos baixos da mangueira, estendeu-a junto às roupas de Amélia Tronca, de Diocir, de Rafael e de um crioulo encorpado ainda dormindo ao lado dos dois. À noite o Largo esvaziou-se. À meia-noite sequer os vultos sob a mangueira são distinguidos. - Vamos sair, vamos achar algum otário para tomar o relógio – balbuciou Coreana no ouvido de Diocir. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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