O dia anunciou-se tão vivo de luz que se refletiu nos olhos dos cachorros, de modo a juntar nas quatro pupilas, a brancura sedosa da areia na beira-mar, o verde desbotado das folhas dos ipês, bem como a densidade de húmus desprendida da terra recuada da areia. Sem falar na mansidão de ritmo dos barcos sobre as águas quase paradas; a cor de madeira nua, afogueada, esmaecida pelo embebimento, dir-se-ia ser a mesma dos olhos do fox terrier; do fox e da cadela vira-lata de pelo marrom, sem cobrir as mamas pretas, estriadas feito castanhas murchas. O fox, com um círculo marrom em cada uma das laterais brancas, da altura dos quase quarenta centímetros sobre as pernas esticadas, foi o primeiro a deixar o focinho a ser acarinhado por Sofia Russell. A dona abaixou-se puxando para cima o vestido comprido da mesma cor dos círculos do fox. Viu que a cor da malha de algodão perfilou-se sem queixas com o negrume dos olhos do fox, o marrom lustroso na madeira dos barcos; e, de quebra, com os pelos crespos amansados pelo xampu, da cadela. - Dino está com cheiro de cachorro de rua - disse Raquel, depois de sentir o húmus vindo da mata de ipês à direita da residência. No extremo da mata, a quatro quilômetros dali, a foz do rio entre o mangue de um lado e de outro, com um cheiro fluvial e sulfuroso, confundira o olfato de Raquel. - Não fale assim com o seu sobrinho! - reagiu Sofia Russell. - Não fale porque você ofende os costumes da casa. Sofia Russell, que ouvira em pé a observação da irmã, abaixou-se logo em seguida para beijar as curvas sob os olhos do fox terrier, para não deixar nele a suspeita de soltar na respiração o fartum do esgoto nos fundos da casa, na rua; inda que das narinas do animal deslizasse um corrimento fino. Raquel riu. Logo foi acudida pela chegada de Johny Play. O alemão há muito se livrara da rascância da língua materna. Entronizara-se no distrito de pouco mais de cinco mil moradores, não demorou a ser tratado como alcaide na feira, na padaria, no mercado público; pela casa suntuosa, o trato melífluo a coelhos e aves de raça; sem falar no fox terrier, na cadela adotada num orfanato de cães abandonados. Beijou Sofia Russell nos lábios fartos, não tão grossos quantos as patas da cadela; beijou-a sem esquecer o tratamento que convém na frente de filhos mimados. - Olá, mãe! Os dois cães, ouvindo o estalido do beijo do casal, alvoroçaram-se sobre as duas patas traseiras, enroscando-se nas pernas de Johny Play e de Sofia Russell. - Querido! Esqueci de trazer as boinas dos meninos, para protegê-los do sol. Suba. Estão no meu quarto. - Eu trouxe as duas. Johny Play tirou do bolso de trás da bermuda, um par de boinas brancas, semelhantes às de um bebê. Sofia Russell beijou-o outra vez, e logo abaixou-se para, com um elástico frouxo, botar na cabeça de cada um dos cães, sua boina. O fox e a cadela abaixaram a cabeça, sem queixas e dando conta da familiaridade com os chapéus. - Que fofinhos... - Sofia Russell não perdeu a chance. Já no carro, o fox terrier, como de costume, instalou-se com as duas patas traseiras no banco de trás, as dianteiras entre o banco de Sofia Russell e o de Johny Play. A cadela, sobre o forro da mala, sem grunhidos de desconforto, deitou-se. Sofia Russell elogiou-a com rasgos de elogio pela "boa educação", inda que, no fundo, reprimindo a meiga porção de recomendações que tinha para cada um dos animais. Raquel, sentada junto às patas traseiras do fox terrier, observando tudo em silêncio. Não podia ser de outro modo, visto que a irmã, no esforço de se mostrar mãe sem nunca ter parido um filho, não interrompia a palração para, também ela, convencer-se de que era uma mãe sem defeitos. O barqueiro já estava esperando por eles. Ao meio-dia do domingo, o leito do rio viu-se ocupado por outras embarcações, todas com motor de popa. Nas margens de um lado e de outro, barracas construídas sobre varas nos lados e no piso, e cobertas por palhas secas de coqueiro, davam abrigo a mulheres eviscerando peixes, lavando roupas. Noutras, famílias juntas num convescote pobre, entretendo-se com o cheiro doentio da lama sob o piso, sorvendo a inhaca das vísceras dos peixes, e convencendo-se de que só eles tinham a propriedade do frescor do rio. Instalados sob a coberta do barco, a família seguiu para o piquenique. Sequer se deram conta do prazer telúrico na pouca balbúrdia dos ribeirinhos. Uma hora depois da partida, o barco parou numa localidade conhecida como Prainha. O barqueiro, sentado num tronco estendido, tirou do embornal cajus e mangas. Raquel e Sofia Russell acomodaram-se na beira do rio. Sobre a grama rala, estenderam a comida; as duas de biquíni. Johny Play deixou a cadela com as duas e seguiu com o fox terrier, mato adentro; conforme dissera, para amestrar o cão nas incursões. Demorou a voltar. Sofia Russell impacientou-se, ordenou ao barqueiro que fosse à procura do marido e do cão. Assim que saiu, o fox reapareceu sem o dono. - Onde está seu pai!? - quis saber a mulher. O barqueiro, depois de vinte minutos, reapareceu com um aviso de madeira há muito caído sobre a relva desigual. Lavou-o no rio para Sofia Russell ler: AREIA ENGOLIDEIRA. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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