As casas são de alvenaria. Há muitos espaços vazios, à espera da cavação no terreno coberto pelo barro. O subsolo é mole, posto que o resíduo de manguezal permanece revolto, por certo entranhado de cardumes de muçuns que dali não saem, alimentando-se de vermes. Os espaços podem acudir mais casas, sem pôr em risco as enguias-de-água-doce. À noite, feito um vadio sem prumo do lugar, elas se revolvem rumo ao estreito regato da Ilha de Joaneiro. Um pescador já aposentado, com uns trocados deixados na única gaveta da cabeceira da cama, e as mãos tão encaliçadas quanto as paredes da casa, fisga três ou quatro dos peixes compridos; sem iscas, com a ponta do anzol miúdo misturada à granulação viscosa da lama. O suficiente para sentar à frente da mesa coberta de fungos, na cozinha, e comer a fritura do muçum com o fogo da aguardente sem cor. A Ilha de Joaneiro, por quarenta anos, dera abrigo à favela. Junto ao suntuoso prédio da COHAB, descobriu-se com forças para pressionar o governo a trocar as casas de pau a pique por estuques de alvenaria. Primeiro uma Liga de Dominó, depois a Associação de Moradores, e logo petições com centenas de assinaturas para a construção de casas e a cavação da rede de esgotos. As petições deram lugar a faixas seguradas por mulheres e meninos. Os homens, nenhuma mulher, puseram-se na comissão de negociação. Vieram os empréstimos a fundo perdido. As casas foram refeitas, a rede de esgoto não foi instalada. A Ilha de Joaneiro, com nova feição, inda que não se livrando da fama de favela, viu-se com uma praça com quadras para esportes, bancos sombreados, uma pista de pedestrianismo. Ninguém faz cooper, a não moradores de três prédios vizinhos, de luxo; nos bancos sombreados sentam-se os mais antigos, para o jogo do dominó; as quadras são ocupadas por meninos que ainda não vão à escola, num futebol ralo e sem torcidas. Numa das casas em frente ao córrego, mora Elias Feijó. Não tem profissão certa, inda que tenha se familiarizado com caminhoneiros de longo percurso. Estacionam, os caminhoneiros, numa praça da Encruzilhada. Ali mesmo, sem calungas próprios, contratam os que esperam as cargas. Elias Feijó é um deles. Fora operário na fábrica de tecidos Tacaruna. A fábrica faliu junto com outras do mesmo ramo. Elias Feijó deixou de ser operário tecelão. Ficou viúvo com um filho de dezesseis anos. Criou-o sem rebuços para dizer que o que lhes falta na mesa nua de comidas, sobra na do proprietário que, mesmo com as máquinas paradas, tem o dinheiro que negara aos operários nos anos em que os tivera na tecelagem. Sem o macacão azul desbotado, coberto de fios soltos da tecedura, perdeu a conversa com outros do mesmo ofício; alguns, como ele, já enredados nos sussurros do Partido Comunista então clandestino. Antes de se tornar tecelão, Elias fora à União Soviética. "Vi o socialismo no rosto de cada operário!" - disse na volta, aos tecelões dos quais tirou o medo de ser militante do Partido Comunista. Não paga aluguel. Sua casa foi beneficiada pelo empréstimo a fundo perdido. Ele mesmo, entre uma talagada e outra de cachaça, removeu os gomos secos da taipa para dar lugar à alvenaria. Não pintou-a, sequer deu acabamento nas paredes; contentou-se em apreciar os lados dos tijolos nus, colados na base e em cima pela massa verde escuro. A favela nunca vira cimento, cultuara-o nos sonhos como um bem de luxo. Elias Feijó sentiu-se abrigado dos olhos da polícia, com as paredes sem as frinchas da taipa seca. Como calunga de caminhão, ganha um dinheiro incerto, inda que sua despesa seja pouca e não tenha contraído o costume de apartar o ganho para a feira escassa, com a feiura de muitas carnes de algumas mulheres da Ilha de Joaneiro. O filho tem a altura do pai, caneludo e costado longo; é calado na frente de estranhos, mostrando a tristeza inconfessa de ver o pai viúvo, sem a energia absorvida na fiação; na fiação e no enredo promissor do tecelão espreitando a gula do patrão. No domingo, Elias Feijó conseguiu fisgar alguns muçuns no córrego; moqueou-os no sal e no alho, visto que a geladeira velha há quinze dias desliga o motor sem que mexam em sua engrenagem. Grivaldo Borba, estudante, conhecera a história do ex-tecelão. Não fora ativista nos tempos de Elias Feijó. Mas consternara-o a feição crioula e capionga do calunga. - A União Soviética não existe mais. O socialismo não mostra seus resultados no rosto dos operários russos. Outra revolução terá que ser feita. Grivaldo Borba, vendo o rosto lustroso de Elias Feijó, o rosto e os olhos vítreos dos goles de cachaça na mastigação do muçum frito, pensou em restituir-lhe a vontade de outra vez juntar os operários no Partido Comunista. Noite seguinte, segunda-feira, o estudante voltou à casa de Elias Feijó. O negro ainda não se livrara do verniz alcoólico no rosto. Disse, olhando para o estudante: - É uma facada no estômago o operário ouvir que o socialismo morreu na União Soviética. Levantou-se da calçada, foi à cozinha. Trouxe um bolo redondo, não um bolo confeitado, um pé de moleque chinfrim, comprado na padaria com o forno esquentado nas brasas da lenha. Pôs na calçada para comerem. Antes, equilibrou na superfície dois números juntos, com pavios a serem acesos sobre a parafina da vela. 91. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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