Sobre a saudade já se disse tudo, já se sentiu tudo. Mas cada saudade é tão própria, é tão particular em cada um, que os conceitos apenas floreiam o sentimento e não aquilo que intimamente se expressa. Gosto do que Clarice Lispector diz sobre ela: Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida. E também daquilo expressado por Neruda: Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já... Arriscando uma conceituação da saudade, diria apenas que é a mente caminhando, voando, gritando, implorando, em busca de alguém ou daquilo que parece arrebatado do próprio ser. E parte tão importante que a vida parece não ter mais sentido sem a sua presença. Assim, a saudade pode ser vista a partir de diversas concepções e sentidos. Contudo, sempre afirmando que a conceitual apenas intui o que intimamente possui dimensão muito maior. E isto porque não há como definir em palavras redemoinhos mentais, alvoroços sentimentais, dolorosas situações presentes na imagem ausente que se deseja presente. Mas também tenho outras saudades que não propriamente de pessoas queridas que estejam ausentes ou distantes. Com relação a estas, num misto de dor e desassossego, procuro fingir o que os olhos e o coração não me deixam mentir. É tudo como uma janela aberta para o horizonte e neste uma estrada com uma curva adiante. E tanta aflição para ver retornar. As outras saudades que sinto não são menos dolorosas, ainda que digam mais respeito ao passado, aos momentos vividos, às situações sentimentalmente importantes que foram povoando o caminho. Coisas simples para muitos, e para outros até mesmo insignificantes, mas de profundas marcas na caminhada. Do contrário, apenas mais uma situação vivida. Daí que tenho saudade da meninice traquina na minha povoação sertaneja. Vida desmedida e desobrigada, outra coisa não fazia senão viver cada dia como se a idade fosse um grande parque de infinitas opções. Ao lado de outros da mesma idade, cada um querendo ser mais esperto que o outro, não havia mundo que não fosse revirado e caminho que não fosse cruzado. Por isso hoje tanta saudade. Tenho saudade da completa nudez para os banhos no meio das ruas em dias de chuvarada. O que hoje seria impensável, proibido e inaceitável, naquele tempo era feito sem qualquer maldade ou olhares maliciosos pelas janelas e portas. Seis, sete, dez meninos, molecotes, todos nus e saltitantes, num festeiro danado debaixo da molhação. E depois as palmadas na bunda por causa da gripe certa. Tenho saudade das brincadeiras de antigamente, dos amigos que se reuniam para fazer da vida a maior reinação. Correr atrás de uma bola murcha nos descampados espinhentos, brincar de pega-de-boi correndo descalço no meio da mataria, tomar banho nas águas mansas do riachinho, levar arapuca pro meio do mato pra pegar passarinho cantador, ser grande fazendeiro de ponta de vaca. Tenho saudade, e muita saudade, da minha roupa festeira, da brilhantina que fazia o cabelo reluzir, da água de colônia para ficar cheirando a jardim. E mais tarde da calça de boca de sino, da camisa volta-ao-mundo, do espelhinho de bolso. Saudade dessa vaidade boa, de querer ser bonito e namorador, ainda que não houvesse beijado nenhuma boca nem sentido bico de seio perto do meu peito. Tenho saudade de tudo, do ontem e do mais distante. E que doce saudade recordar o primeiro amor, não conseguir adormecer porque estava namorando, tremer o corpo inteiro no primeiro beijo, afoguear completamente sem saber por quê. E depois os passos pela vida, as conquistas e as alegrias. Em tudo tanta saudade. E quando me ponho a rememorar tais instantes volto ao espelho para sentir o que ainda sou. E o que já não sou me foi levado por outras saudades. Estas consomem sim. Machucam, maltratam, me deixam até com saudade das outras saudades, minha povoação sertaneja. Vida desmedida e desobrigada, outra coisa não fazia senão viver cada dia como se a idade fosse um grande parque de infinitas opções. Ao lado de outros da mesma idade, cada um querendo ser mais esperto que o outro, não havia mundo que não fosse revirado e caminho que não fosse cruzado. Por isso hoje tanta saudade. Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com).
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