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Contos
27/03/2013 - 15h07
Bolo de aniversário
Marco Albertim
 

Convém descrever Febrônio Catanduva por ser, na rua onde vive, o único a morar sozinho; por já ter sido casado e abandonado pela mulher, assim que notara no marido que a arcada superior dos dentes, não era só um enfeite na boca miúda; era um rapa-coco de pontas finas, cujas frinchas entre um dente e outro, deixavam escapar sua voz cava e indecisa. Deixara-o levando o filho de dezesseis anos. O rapaz, tão hesitante quanto o pai, olhara para os dois sem saber que rumo seguir, sem se dar conta da própria basbaquice e certo de que a obediência à mãe seria um exemplo a mais na rua cheia de moços da sua idade. Febrônio vira os dois sumindo na curva da calçada, esquina com a avenida; olhara sem crer nos olhos, em pé, em frente a casa, e logo se sentara num banco de madeira de seu uso nas manhãs para sorver a pouca quentura do sol entre as nuvens.

Convém descrever Febrônio pelo mau gosto de seu pai e da mãe, na escolha do singular nome, inda que com orgulho por constar pouco nos assentamentos do cartório de registro civil. O nome, sem ter nada de patronímico, ajustou-se sem ranhuras em seu dorso abaulado, em seu rosto comprido feito um coco ainda na casca.

A festa de aniversário do Recife, anunciada nos jornais, tirou-o do desânimo; ou o fez crer que também ele, com a palidez que o pardo-escuro de seu quarto impingira em seu rosto, era um conviva tão festivo quanto seus vizinhos dados a comemorações. Vestiu a calça de casimira branca, acinzentada, com pontas de fios brancos na superfície; e a camisa branca, com mangas compridas e punhos cobrindo o dorso das mãos. Não se olhou no espelho, posto que há muito perdera o costume, inda que conservasse a penteadeira chamuscada de fungos nos lados.

Saiu do quarto e seguiu para a cozinha. Oito horas. O ruído da água escorrendo de roupas espremidas pela vizinha, fê-lo sentir-se capaz de resgatar a memória que tinha de, ainda com vinte e poucos anos, festas e disputas por uma moça ou outra com os escassos amigos. Fechou a porta dos fundos. De volta, no corredor, rumo à porta da frente, lembrou-se que não pusera na mesa da cozinha a bandeja de vidro onde, ainda casado, sua mulher punha as porções de bolo trazidas de aniversários. Repetiu o gesto, cumprindo, conforme seu juízo curto, uma praxe.
 – Vai casar de novo, Febrônio? – ouviu da vizinha, quando trincou a chave da porta da frente.
 – Quem dera... Já se foi o tempo em que o vizinho se casava com a vizinha.

A vizinha riu por se ver flagrada em sua própria viuvez. Febrônio, por certo crendo no efeito da colônia que pusera sob as orelhas, espantou-se por ter sido capaz de mostrar presença de espírito. Achou pouco e prometeu à vizinha que daria um jeito de trazer-lhe um pedaço de bolo.
 – Prepare o café. – emendou.

Na Praça do Arsenal, Febrônio sentiu-se tão ou mais familiar ao local que o prefeito e sua comitiva, sob o toldo no palanque montado para abrigar o bolo de três metros de comprimento e um de largura. Fora marinheiro, Febrônio. Casara no retorno de uma das viagens ao exterior. O convívio com a mulher fora entrecortado. Conseguiu cumprir os trinta anos precisos para requerer a aposentadoria; requereu-a e não demorou a mulher distinguiu traços do homem da pedra no rosto do marido.

Não teve pressa em assegurar um lugar no começo da fila, para receber o pedaço do bolo. O prefeito não discursou, não convinha na festa de aniversário dos 476 anos do Recife. Febrônio, cuja cabeça expunha fios brancos e prateados, sentou-se ao lado de mulheres idosas, com vestidos florados e cobrindo os joelhos. A fila estendeu-se longa, enviesando-se no entorno da praça. As mulheres, sentadas em frente ao acesso principal da praça, foram servidas por uma das moças encarregadas dos cortes do bolo. Febrônio, mesmo com disposição para se manter em pé duas horas numa fila, foi beneficiado pela gentileza da moça. Comeu um pedaço do bolo e, num saco plástico que trouxera de casa, juntou mais três, urdindo-se no café da vizinha.

Ao meio-dia, finda a celebração, os maracatus silenciaram. Em volta do palanque, a rua deu conta de manchas escuras nas pedras do calçamento. O sol derretera o glacê que a multidão deixara cair no afã de comer o bolo. O palanque, deserto, permitiu que o cais fosse visto por Febrônio. Ele voltou para casa, lembrando-se da bandeja vazia na mesa da cozinha.

À noite, com a mesma preguiça no rosto, foi à casa da vizinha. Ela baixou o volume da televisão. Os dois sentaram-se no sofá, comeram o bolo e tomaram um café tão quente que serviu para reavivar o prazer tátil de Febrônio. A televisão se tornou um bibelô sem graça. Ela segurou-o na mão e disse:
 – Se você casar comigo eu faço um bolo todo domingo...


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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